22.12.08

Agência e verdade

O relativismo absoluto é uma abstração que normalmente usamos quando queremos criticá-lo (como eu fiz aqui). Na prática, relativistas não são sempre relativistas, nem mesmo quando pesquisam, caso contrário não fariam seu trabalho.

Já citei numa postagem anterior o fato de muitos relativistas não relativizarem seu próprio relativismo. Se o fizessem, o relativismo não seria aplicável a nada. Outro exemplo: antropólogos costumam ser relativistas. Alguns deles relativizam até mesmo sua capacidade de interpretação, porém dão como certo o princípio de que a melhor explicação é a do próprio nativo, e seguem adiante.

Não os critico. Acho mesmo que o relativismo tem algo proveitoso a nos dizer. Meu ponto aqui é outro: a ação humana exige que assumamos como verdadeiras algumas proposições sobre as quais não temos certeza (leia aqui sobre uma idéia relacionada: a sugestão pragmatista de que toda crença útil é verdadeira). O fato de sabermos que mapas não são totalmente verdadeiros no que se refere à realidade objetiva dos terrenos não nos impede de crer em suas indicações e chegarmos aos nossos destinos. Algo semelhante ocorre às nossas crenças, aos nossos mapas mentais.

Talvez, como afirmam os céticos, nos seja impossível conhecer completamente a realidade objetiva das coisas, mas me parece razoável supor que podemos conhecê-la o suficiente para dar um sentido melhor às nossas vidas no mundo.

19.12.08

Seguir regras é pedir para ser trouxa

A rentabilidade é proporcional aos riscos, certo? Se um fundo remunera pouco, só pode ser conservador. Se remunera muito, é uma aventura.

No mapa mental de muita gente boa funcionava assim. Então essas pessoas investiram no fundo do Madoff, imaginando-o seguro porque remunerava pouco, e viraram trouxas. Era uma pirâmide.

Citei o caso para mostrar como a discussão sobre a verdade e o conhecimento (a epistemologia) é essencial para a gente de negócios (mais sobre isso aqui). Quem faz estratégia trabalha na dobra platônica - mas geralmente não sabe disso.

Seguir regras é pedir para ser trouxa. Fórmulas são péssimas alternativas à introspecção e ao pensamento crítico.

A realidade enunciada

"[...] a aparência — aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima [...] vivem uma espécie de vida incerta e obscura, a não ser que e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se adequadas à aparição pública" (p. 59-60).

"O único atributo do mundo que nos permite avaliar sua realidade é o fato de ser comum a todos nós"(p. 211).


ARENDT, Hannah. A condição humana.
Rio de Janeiro, Forense, 1981.


O conceito de realidade enunciada proposto por Hannah Arendt é uma alternativa à noção de realidade objetiva, a qual questionei aqui.

17.12.08

A auto-contradição do relativismo

"Os defensores do 'vale tudo' não costumam adotar essa mesma atitude no que diz respeito à própria idéia de 'vale tudo'."

Moser, Mulder e Trout, em
"A Teoria do Conhecimento", p. 45.

Se toda verdade é relativa, por que essa verdade também não seria? O relativismo extremo desafia a lógica.

14.12.08

Diversidade cultural e inteligência competitiva

Um história curiosa na homepage da CIA hoje: a agência está priorizando a contratação de minorias. O objetivo é promover a diversidade cultural como meio para obter pontos de vista e opiniões diferentes. Assim eles esperam evitar a focalização excessiva, o que leva a erros de previsão como o que eu comentei aqui.

Será que a CIA está chegando atrasada mais uma vez? Pelo que levantei via internet, o programa começou pra valer a partir do ano passado, muito tempo depois de várias empresas terem iniciado algo semelhante.

Hoje em dia, apelar para a diversidade cultural é uma abordagem rotineira naquelas empresas mais preocupadas em melhorar a inteligência competitiva e a capacidade de formular estratégias (além de ser um dos princípios que guiam a modelagem dos agora badalados mercados preditivos).

Leiam a nota da CIA:

"What if everyone had the same views and opinions? Just about everything would stay the same. Diversity is critical to the Central Intelligence Agency workforce. It reflects the unique ways we vary as intelligence officers. Last week, the CIA hosted its annual Diversity Showcase to highlight the programs that are enhancing minority recruitment, diversity of thought and employee advancement. The success of these programs has provided the Agency with employees who are a valuable resource of a variety of insights and ways of thinking." Continua aqui.

13.12.08

Uma questão sobre a verdade

A definição de verdade que discuti aqui é típica do ceticismo. Ela pressupõe uma rígida separação entre sujeito e objeto, levando-nos a duvidar da nossa capacidade de saber se sabemos a verdade, ou até, como colocam Moser, Mulder e Trout, da nossa própria capacidade de conhecer:

"O ceticismo floresce quando a verdade é encarada como algo totalmente objetivo. Certos filósofos traçaram com tanta força a distinção entre a aparência que as coisas assumem para nós (a aparência, por exemplo, de que o lápis parcialmente submerso na água está flexionado) e a realidade objetiva das coisas (o lápis na verdade é reto) que desesperam da nossa capacidade de conhecer como as coisas são objetivamente" (em "A Teoria do Conhecimento", p. 16).

Mas e se questionássemos esse pressuposto? E se considerássemos que não há separação clara entre nós e aquilo que chamamos de realidade (como no conceito de "realidade enunciada" de Hannah Arendt)? Como isso mudaria a nossa forma de lidar com a realidade? Talvez nos tornássemos mais criativos e tolerantes, eu imagino.

* * *

Sobre o exemplo na citação acima: a realidade objetiva do lápis não é ser reto. "Reto" é apenas uma idéia usada para descrever certa qualidade do lápis visto a olho nu. Se examinado de outro modo, com microscópio por exemplo, sua superfície não pareceria "reta" (ela pareceria bastante irregular, cheia de pequenas curvas).

12.12.08

Como saber se sabemos a verdade?

Alguns filósofos entendem que só poderíamos dizer que sabemos a verdade sobre alguma coisa quando a nossa concepção dessa coisa corresponde exatamente à realidade dela, ou seja, à coisa como ela é independente da nossa consciência (esse é o conceito de realidade apresentado por Moser em um dos capítulos do "Compêndio de Epistemologia" de Greco, Sosa e Bettoni).

Ora, se: (1) assumirmos esse conceito de verdade como correto e (2) considerarmos que não temos outros meios de acesso à realidade das coisas a não ser através da percepção consciente, como poderemos verificar se as coisas de fato são como imaginamos que sejam? Como saber se nossos mapas mentais correspondem à realidade? Como saber se sabemos a verdade?

A realidade é tudo aquilo que pode nos contrariar?

Apesar dessa dificuldade (impossibilidade como diriam os céticos?), há ocasiões em que as coisas não se comportam como esperávamos - nossos pontos de vistas e conceitos das coisas parecem não dar o resultado que esperávamos. Costumamos dizer então que estávamos errados a respeito das coisas e imediatamente reformulamos nossas teorias sobre elas.

Será que estamos então mais próximos da verdade? Será que agora "vemos" melhor a realidade? Como argumentei acima, parece impossível saber disso se adotarmos os conceitos de verdade e de realidade apresentados no primeiro parágrafo (questiono-os aqui). Por outro lado, talvez pudéssemos estar justificados em nossa reivindicação caso apelássemos para uma outra definição de realidade: realidade é tudo aquilo que pode nos contrariar.

Essa noção nos conduz diretamente à idéia de que é possível ter certeza de que estamos definitivamente errados sobre algo, mas nunca de que estamos definitivamente certos (eis a posição de Karl Popper, ao propor a falsificação como procedimento mais adequado lidar com problema da indução).

Duas notas sobre o conhecimento

  1. A verdade passou a ser uma das condições para o conhecimento desde que Platão definiu conhecimento como crença verdadeira justificada - definição esta muito disputada hoje em dia, mas isso já é papo para outra hora.
  2. Para Nietzsche, a verdade é "apenas uma expressão para designar a utilidade, para designar aquela função do juízo que conserva a vida e serve à vontade do poder" (citado por Hessen em "Teoria do Conhecimento"). Nesse sentido, o nosso conhecimento dos objetos progride na medida em que eles resistem às nossas intenções. Considero tal resistência uma medida da nossa ignorância (ou da inadequação de nossos mapas ou representações mentais), além de ser também uma manifestação da aleatoriedade e da incerteza.

11.12.08

Os limites do conhecimento e como lidar com eles

A nossa mente é pequena demais para tanta informação. O mundo que nos rodeia é imenso, complexo demais, para a nossa cabeça. Para conseguirmos navegar por esse mundo de modo razoavelmente seguro e produtivo, criamos mapas mentais (aproximadamente o mesmo que modelos mentais, esquemas, molduras, enredos, etc., dependendo do referencial teórico), os quais resumem os dados da realidade em categorias conceituais tais como "ocidental", "muçulmano", "terrorista", "instruído", "ignorante", "pobre", "rico", etc.

Também simplificamos a realidade por meio da narração, estabelecendo relações de causa e efeito entre as coisas, ou melhor, entre os nossos conceitos das coisas (relações essas muito mais predominantes na nossa mente do que no mundo real, como argumenta Nicholas Nassim Taleb).

Quando os nossos mapas mentais falham

Usamos mapas mentais para navegar pela realidade. Porém, como ocorre a qualquer mapa, os detalhes lhes escapam.

Além disso, os nossos mapas mentais sofrem um grave problema de atualização (as coisas são muito mais impermanentes do que eles supõem).

O problema ocorre quando confundimos esses mapas com a realidade. Isso nos leva a graves erros de interpretação e de previsão (a aleatoriedade que percebemos no mundo talvez seja, na verdade, gerada pela nossa mente classificatória).

Vamos a um exemplo. Aqueles terroristas que atacaram as torres gêmeas no dia 11 de setembro de 2001 estavam nos EUA há muitos meses e em nenhum momento foram tidos como suspeitos pela inteligência norte-americana. Aparentemente, até então o mapa mental da CIA não relacionava a categoria "muçulmano altamente instruído e rico" à categoria "terrorista suicida" (apenas os "muçulmanos pouco instruídos e pobres" poderiam estar nesta categoria).

Como não ser enganado por mapas mentais?

Como podemos evitar tais erros, fazer previsões mais precisas e tomar melhores decisões? Desenvolvo essa discussão aqui no blog ao longo de vários posts. Há gente, por exemplo, que defende o valor dos mapas mentais, considerando-os ferramentas indispensáveis para orientar a tomada de decisão. Para outros, seguir regras é pedir para ser trouxa. E você, como lida com o conhecimento? Como descobre se o que sabe é mesmo verdade?

A dobra platônica

A dobra platônica é o vão entre o que sabemos e o que achamos que sabemos, "a fronteira explosiva onde a mente platônica entra em contato com a realidade confusa" (p. 25). É onde nossos mapas mentais deixam de ser aplicáveis - mas não sabemos disso. É onde mora a aleatoriedade.

TALEB, Nassim Nicholas. A Lógica do Cisne Negro.
[Livre citação de trechos das páginas 25, 49 e 78]