30.11.13

Umberto Eco e a propaganda


Propaganda não é arte, é artesanato.
Washington Olivetto


Por mais criativos que sejamos em publicidade e branding, dificilmente atingiremos o status de verdadeiros artistas. No caso da redação publicitária propriamente dita, Umberto Eco, em suas Confissões de um Jovem Romancista, meteu o dedo na ferida ao indicar o que coloca a literatura à parte de outras escritas criativas:



"[...] num poema ou num romance, a intenção é representar a vida em toda a sua incoerência. A intenção é por em cena uma série de contradições, tornando-as claras e pungentes. [Os autores] pedem a seus leitores que arrisquem uma solução; não oferecem uma fórmula definida (exceto os escritores kitsch ou sentimentais, que almejam oferecer consolações baratas)".

Nada a ver portanto com a abordagem padrão da propaganda, centrada no discurso deliberativo, que prima pela circularidade e pelo fechamento, e vive obcecada pela aproximação entre os valores do consumidor e os valores da marca ou do produto.

O texto publicitário raramente admite o contraditório. Ao conflito, muitas vezes sugerido no título para despertar a curiosidade e o interesse, segue-se uma fieira de fatos e provas que enaltecem de forma mais ou menos explícita a satisfação proporcionada pelo produto ou pelo estilo de vida associado à marca. No final da conversa, um epílogo conclui o raciocínio, recapitula o argumento e incentiva o engajamento com a marca do anunciante. Satisfação garantida.

A estratégia consiste quase sempre em seduzir o consumidor por meio da emulação: a marca apresenta-se como alguém que compartilha os mesmos valores do indivíduo, um semelhante seu, que, por isso, merece a sua afeição. A respeito disso, Celso Figueiredo foi claríssimo em seu livro sobre redação publicitária:

"A publicidade raramente convence alguém de algo. Ela persuade alguém a algo. [...] Para convencer, é necessário fazer alguém mudar de opinião, vencer os conceitos existentes na mente do consumidor [...]; já persuadir tem mais a ver com concordar com algo que o consumidor já pensa e, por meio dessa concordância, trazê-lo para o produto que se quer anunciar".

Na literatura, não há persuasão nesse sentido; a sedução não ocorre por meio da concordância e da emulação; ela é estética, obtida pelas manhas do estilo e da engenhosidade do autor, e não por uma mensagem cujo conteúdo conforta e adula as pessoas. Pelo contrário, o romancista e o poeta estão sempre muito ocupados em nos tirar da zona de conforto mental, nos livrar de clichês existenciais e renovar o nosso modo de olhar o mundo.

Leia também: O que é arte afinal?

9.11.13

A semiótica do perseguidor

Héber Sales


Esse conto soberbo de Julio Cortázar é também uma pequena tragédia semiótica. Johnny Parker, saxofonista genial e O Perseguidor, luta desesperadamente para se livrar da armadilha das palavras e das categorias. É o que acontece quando ele, certa noite, se olha num espelhinho (os grifos são meus):
"Na verdade esse cara não sou eu, no primeiro momento senti claramente que não era eu. Agarrei-o de surpresa, de banda, e soube que não era eu. Eu sentia isso, e quando a gente sente alguma coisa... Mas é como em Palm Beach, em cima de uma onda despenca em você a segunda, e depois outra... Você não acabou de sentir e já vem outra, vêm as palavras... Não, não são as palavras, é o que está nas palavras, essa espécie de cola-tudo, essa baba. E a baba vem e cobre você, e o convence que o do espelho é você. Claro, mas como entender? Mas se sou eu, com meu cabelo, com esta cicatriz. E as pessoas não entendem que a única coisa que aceitam é a baba, e por isso acham tão fácil se olhar no espelho."
Johnny se refere à sua identidade social, colada nele por seu público, pelos críticos, por Bruno, seu biógrafo e narrador do conto: o protagonista é afro-americano, jazz man, músico revolucionário, renovador do gênero, blá, blá: baba.

E a baba não gruda apenas em Johnny, não se espalha somente sobre as pessoas. Ela também cola nas coisas e acontecimentos, tapando os seus furos e saliências desconcertantes, tornando o mundo muito mais harmonioso e previsível do que ele de fato é.

A arte, a verdadeira arte, é a perseguidora dessa ilusão, é a "lebre que corre atrás de um tigre que dorme", e não "o que Satchmo toca, tão limpo, tão puro".
"Você não acha que o que Satchmo toca é como um aniversário ou uma boa ação? Nós... Olha, eu digo que quis nadar sem água. Achei que... mas tem de ser idiota... achei que um dia encontraria outra coisa. Não estava satisfeito, pensava que as coisas boas, o vestido vermelho de Lan, e até Bee, eram como ratoeiras, não sei me explicar de outro jeito... armadilhas para que a gente se conforme, você sabe, para que a gente diga que está tudo certo. Bruno, eu acho que Lan e o jazz, até o jazz, eram como anúncios de revista, coisa bonitas para que eu ficasse de acordo como você fica porque você tem Paris e sua mulher e seu trabalho... Eu tinha o meu sax..."
Johnny não se conforma, tenta se libertar da baba por meio da sua música, da maconha, do álcool, e de pequenas epifanias cotidianas. A mais impressionante e perturbadora delas acontece no metrô, que para ele "é como estar metido num relógio" ("As estações são os minutos, você entende?").
"Comecei a pensar na minha velha, depois em Lan e nos meninos, e claro, naquele momento eu sentia que estava caminhando pelo meu bairro, e via as caras dos rapazes, os daquele tempo. Não era pensar, acho que já disse a você que não penso nunca; estou assim parado numa esquina vendo passar o que penso, mas não penso no que vejo. Entende?"
Johnny está ali, metido num vagão, em estado de fluxo, lembrando velozmente de tantas coisas que, para enumerá-las, precisaria de "uns bons quinze minutos". Mas todas essas memórias lhe ocorrem em um minuto e meio, o tempo do trajeto entre uma estação e outra.
"Então, como pode ser que eu tenha pensado durante quinze minutos, hein, Bruno? Como se pode passar um quarto de hora em um minuto e meio? [...] Bruno, se eu pudesse viver apenas como nesses momentos, ou como quando estou tocando e também o tempo muda... Você percebe o que poderia acontecer num minuto e meio... Então um homem, e não só eu mas também essa aí e você e todos os rapazes, poderiam viver centenas de anos, se a gente encontrasse a maneira poderíamos viver mil vezes mais do que estamos vivendo por culpa dos relógios, por causa dessa mania de minutos e de depois de amanhã..."
Bruno, o narrador, sorri da melhor maneira que pode, compreende vagamente que Johnny tem razão. "Mas o que ele suspeita e o que eu pressinto de sua suspeita vai se apagar como sempre assim que eu estiver na rua e entrar na minha vida de todos os dias", assim que estiver de volta à baba.

Leia também: A semiótica do vazio.