24.2.13

Clarice Lispector, etnógrafa do consumo

Este trecho do conto Amor, de Clarice Lispector, parece até parte de um relatório de pesquisa qualitativa sobre o consumo de produtos para decoração e artesanato por certas donas de casa - um relatório que fosse escrito por uma pesquisadora tão perspicaz e artista quanto ela. Os melhores ficcionistas são excelentes etnógrafos afinal, sempre muito atentos às motivações simbólicas das pessoas.

"Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado."

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16.2.13

Nota para uma leitura mais atenta

Regrinha básica para uma boa leitura de ficção ou de poesia, que até alguns críticos profissionais ignoram às vezes (falta-lhes generosidade, um pouco mais de atenção, de paciência, de humildade?): o que, numa leitura superficial e apressada, pode parecer um movimento errado, grotesco ou mal bolado, talvez seja na verdade um belo golpe de imaginação, tramado para produzir um efeito de sentido necessário, inevitável até, se considerarmos a obra em seus próprios termos e propósitos - um golpe sem o qual o texto literário não vence a desconfiança e a indiferença do leitor.

Acabei de lembrar disso ao reler O Olho, conto de Myriam Campello, que um dia me desagradou por uma ou outra metáfora mais tosca. Como poderia ser diferente no entanto se o narrador, logo no primeiro parágrafo, nos avisa: "Não sou escritor, isso vê-se. [...] Se deito ao papel notícias do vendaval que no último mês desmantelou minha vida é por justamente sentir-me em pedaços"?

É natural que um sujeito desses, poeta amador e casual, apele para imagens banais e cafonas como "Se só entre nós permitimos que a espuma do amor flua e se derrame?". Como também é muito verossímil e ficcional que em outros trechos, arrebatado pelos acontecimentos excepcionais da narrativa, lhe ocorram observações mais afiadas e poéticas. Acontece quando, por exemplo, ele se refere a "um bom dia reservado que marca limites" ou quando, ao comentar um desejo muito intenso e proibido, descreve-o como uma "avalanche que se nutre do próprio excesso para melhor derrubar e engolir".