24.2.15

Estética, emoção e o infinito particular


Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção. 
Jean-Luc Godard

Só o artista para ir mil vezes ao chão e, grogue, 
continuar lutando, a forma fora da fôrma.
Chacal


Héber Sales

Outro dia escrevi aqui que, na base da experiência estética, se encontra a analogia entre as formas de expressão e as formas de conteúdo - o sujeito fica sob o domínio da metáfora e do ritmo: a matéria significante, seja ela sonora ou visual, se organiza aos seus olhos de um jeito que lembra e ecoa a estrutura de significados do texto.

Mas o prazer estético de uma obra de arte não vem de uma metáfora qualquer. No nosso dia a dia, de tão surradas e domesticadas, algumas delas não nos espantam mais. Quem ainda se inquieta ao ouvir a prosopopéia "pé da mesa"? Mal percebemos que este ente - tão absorto em seus pensamentos lenhosos que até parece sem vida - pode se agitar e andar a qualquer momento.

SE 
Se as coisas falassem –
mas se falassem, também poderiam mentir.
Sobretudo as mais comuns e pouco apreciadas,
que finalmente conseguiriam chamar nossa atenção. 
Dá pânico pensar
o que me diria teu botão descosido,
e a ti, o que diria a chave de minha porta,
essa velha mitômana.

A experiência estética exige a surpresa desse Se, de Wislawa Szymborska: é a "imagem singular", não registrada por um "saber prévio", que causa uma "emoção viva", lembra-nos Geninasca em um ensaio genial, O olhar estético., ou, como afirma o crítico Nicolas Bourriad, em Estética Relacional, "um encontro fortuito duradouro, [que] mantém juntos momentos de subjetividade ligados a experiências singulares" (p. 27).

RESTAURADORA 
A morte é limpa.
Cruel mas limpa. 
Com seus aventais de linho
- fâmula - esfrega as vidraças. 
Tem punhos ágeis e esponjas.
Abre as janelas, o ar precipita-se
inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras. 
Porém tudo voltou a ser como antes da carne
e sua desordem.

O incidente estético não precisa ser cordial nem de fino trato ou de bom gosto; não implica necessariamente sentimentos delicados e sublimes; basta que, como ocorre nesse poema de Henriqueta Lisboa, ele desmonte a percepção convencional ou puramente lógica que bloqueia o nosso acesso à "coisa em si mesma" e ao seu efeito sensível, e então, de repente, o mundo deixa de ser o mundo ordenado e previsível do senso comum, com suas referências manjadas a inúmeros particulares, ou o mundo das deduções, que só verifica a conformidade ou não-conformidade dos saberes em relação a premissas pré-estabelecidas e partilhadas, e os seus elementos, como os apreendemos nos dicionários, enciclopédias e manuais - separados uns dos outros -, se diluem, se fundem e soam como as notas musicais em um acorde: não se pode mais distingui-los entre si, nem mesmo da emoção que a sua harmonia nos causa.


Composição VIII, de Wassily Kandinsky: "A música é o maior professor".

"Separada de de toda a finalidade pragmática, a percepção desemboca sobre a contemplação desinteressada que coincide com a experiência eufórica da solidariedade do sujeito e do mundo, de um mundo para o sujeito, que se constrói concomitantemente sensível e inteligível. A "imagem singular" tem isso de particular, pois ela assegura a passagem de um múltiplo particular a uma unidade geral [...]. Ela nos remete a um uso poético, e não mais utilitário da linguagem. [...] As figuras do mundo, longe de corresponder aos significados da linguagem, funcionam como significantes cujo significado não é outro que os estados modais do sujeito" (GENINASCA, 2004, p. 42).

O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha a minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular 
(MARISA MONTE / ARNALDO ANTUNES / CARLINHOS BROWN) 

~

Para ir além

BOURRIAD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. Essa obra discute as novas formas de arte que surgiram a partir dos anos 1990, as quais, segundo o autor, não podem ser compreendidas pelas teorias estéticas existentes até então. A arte contemporânea é relacional, "toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado" (p. 19).

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007. É um manual. Suas considerações sobre o discurso estético estão na seção "Apreensões e racionalidades", que começa na página 229.

GENINASCA, Jacques. O olhar estético. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004. O ensaio corresponde a um capítulo do livro organizado pela Ana Claudia de Oliveira. Vale à pena lê-lo todo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário