Histórias são a matéria-prima do
branding hipercultural. Mais especificamente, as histórias sobre projetos de identidade celebrados pelos diferentes movimentos culturais.
Essa obsessão pela narrativa pode levar alguns a perguntar: e os eventos promocionais, qual o papel dessas experiências de marca em tal modelo de branding?
O questionamento só faz sentido se entendermos que o falar (contar uma história) é o oposto do fazer (participar de um evento promocional).
Ora, essa distinção deixa de ser pertinente a partir do momento em que encaramos os eventos promocionais como rituais que encenam o
mito de identidade associado à marca.
O que é um ritual?
O ritual é uma "prática social realizada de acordo com regras fundamentais" (NEIVA JÚNIOR, 2009, p. 168). Ele é constituído de sequências ordenada e padronizadas de palavras e atos, possuindo um caráter essencialmente performativo e simbólico: valores são inferidos e criados pelos atores sociais durante a performance (TAMBIAH, 1985).
Para identificar os rituais de uma comunidade, precisamos apreender quais eventos os seus membros consideram únicos, excepcionais, críticos e diferentes.
Há rituais dos mais diferentes tipos e conteúdos. Eles podem ser profanos (carnaval), religiosos (quaresma), civis (eleição), festivos (reveillon), sérios (funeral), formais (casamento), informais (
happy hour), simples (
casual day) ou elaborados (rituais de iniciação).
Rituais de consumo
O mundo do consumo é cheio de rituais. Chá de bebê, amigo secreto, trocar presentes no Natal, lavar o carro sábado de manhã, ir ao cabeleiro sábado à tarde: todas essas práticas sociais são eventos únicos e previsíveis.
São simbólicos também, pois expressam significados (McCRACKEN, 2003). Vejam, por exemplo, neste post sobre
análise semiótica em netnografias, quantas ideias o simples ritual do cafezinho pode comunicar.
A propósito, esse exercício etnográfico é um exemplo de que podemos ler uma prática social da mesma forma que lemos um texto estritamente linguístico como o desta
publicidade da Benetton.
Do ponto de vista semiótico, portanto, não há muita diferença entre o falar (contar uma história) e o fazer (participar de um evento promocional). Subjacente a ambos os fenômenos, há uma máquina narrativa que constrói significados.
Rituais nas mídias sociais
No branding hipercultural, os eventos quase sempre envolvem as mídias sociais. Por isso, antes de abordarmos a natureza ritualística do marketing promocional, vamos discutir algumas peculiaridades dos rituais que ocorrem nesse meio.
Tradicionalmente, a antropologia tem visto o ritual como fenômeno que une os indivíduos à totalidade do grupo, igualando-os. Seria uma prática integradora portanto, na qual o sistema de regras inibiria quase totalmente a criatividade individual.
Neiva Júnior critica essa abordagem, lembrando-nos que, "ao se adequarem às regras, os indivíduos que participam das cerimônias exibem suas qualidade pessoais e valor social".
"Presumir que um ritual é feito a princípio em benefício do grupo é mera idealização, mais próxima das hipóteses holísticas dos antropólogos do que da realidade dos atores sociais. Um ator social executa um ritual para estabelecer uma distinção entre ele e os outros membros do grupo. A participação no ritual dá prestígio [...]" (2009, p. 169).
Esse modo de encarar o ritual pode ser relacionado ao
circuito sedutor das redes sociais, processo cuja dinâmica já comentei aqui no blog. Em resumo, ele consiste no seguinte: por meio de suas atualizações de status, os usuários buscam obter dos seus amigos a confirmação de que possuem uma identidade distinta, própria, e, ao mesmo tempo, culturalmente válida.
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O #FF (Follow Friday) é um ritual no Twitter. |
Consideremos, por exemplo, o ritual do #FF (
Follow Friday) no Twitter. Há nele duas dimensões, uma coletiva e a outra individual. Alguns dos seus elementos são padronizados e adotados por todos: a própria
hashtag, o dia em que ela deve ser usada (sexta-feira) e a substância do seu conteúdo (perfis que vale à pena seguir no Twitter). Cada usuário, no entanto, é relativamente livre para indicar o perfil que bem entender, o que lhe permite afirmar a sua individualidade e se distinguir de seus companheiros.
Rituais promocionais
Eventos promocionais possuem um natureza essencialmente ritualística. Encontramos neles todas aquelas caraterísticas que, segundo Mariza Peirano (2003), definem o ritual:
- são eventos considerados especiais (não são rotineiros, cotidianos);
- possuem uma forma específica (um certo grau de convencionalidade, de redundância, combinando palavras e outras ações etc.);
- apontam e revelam as representações e os valores compartilhados pelos membros da rede social de marca;
- permitem resolver conflitos e reproduzir relações sociais (por exemplo, eventos promocionais baseadas no ritual do amigo secreto).
Eventos promocionais no branding hipercultural
O que há de específico nos eventos de branding hipercultural, no entanto, é a celebração de um determinado mito de identidade pela marca, o qual também é promovido em anúncios, conteúdos, produtos e serviços - a isotopia ou recorrência do mito nas várias peças e experiências é necessária para construir a
personalidade autoral da marca.
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A Liga dos Bons no Facebook é um ritual de marca. |
Observem, por exemplo, como a Coca-Cola enaltece o mundo dos bons não só no VT
Existem razões para acreditar como também no livro "125 razões para acreditar em um mundo melhor", no aplicativo da
Liga dos Bons no Facebook e no estúdio móvel que convida as pessoas a gravarem depoimentos sobre as coisas boas que lhes acontecem.
Estas experiências ajudam a tornar mais concreto e sensível o projeto de identidade social que a marca propõem aos indivíduos por meio das histórias que conta em seus anúncios e conteúdos - funcionam como encenações que tornam o mito mais "real".
Referências
McCRACKEN, Grant.
Cultura e Consumo - Novas Abordagens ao Caráter Simbólico dos Bens e Atividades de Consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
NEIVA JUNIOR, Eduardo.
Jogos de Comunicação: em busca dos fundamentos da cultura. São Paulo: Ática, 2009.
PEIRANO, Mariza.
Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
TAMBIAH, Stanley. A Performative Approach to Ritual, in
Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.