24.9.16

O que faz de um publicitário um publicitário


Héber Sales

A nossa profissão está atualmente mais para matemática do que para ciências humanas. É uma síndrome que está devastando o marketing e ameaça a publicidade também. Aliás, vocês conhecem a diferença entre um profissional de marketing e um publicitário, não é?

Um profissional de marketing é o sujeito racional o suficiente para saber que um psicopata jamais vai ser tão querido quanto um mocinho. Um publicitário é como um bom roteirista: é criativo o suficiente para imaginar a história de um serial killer psicopata encantador, com quem quase todo mundo vai se identificar (Dexter).

A miséria da maioria das faculdades de publicidade hoje em dia é ensinar marketing e negócios demais, e arte, criação e criatividade de menos. O que é preciso aprender de uma vez por todas? Que a linguagem não foi feita para revelar a verdade - e eu duvido que revele -, mas para realizar o impossível.

Fazendo arte, jogando bola


O excesso de raciocínio analítico e linear começa pelo modo como alguns (cada vez menos, sejamos justos) ainda vêem o trabalho das agências de publicidade .

Uma agência não é uma indústria ou repartição. Uma agência é uma bola rolando, uma bola chamada criação. Cada setor da agência é um dos gomos da bola (mas todos os gomos são a mesma bola, a bola da criação; todos são criativos). Imaginem.



Os gomos rolam juntos desde o começo da jogada até o fundo do gol. Uma hora, um gomo está por cima, empurrando os outros adiante; outra hora, ele está por baixo, sendo empurrado (mas logo ele pode voltar a ficar por cima e empurrar os demais novamente).

Quando o gomo do atendimento começa a rolar, os outros gomos já estão rolando também, ou seja, a bola da criação já começou a girar: as perguntas na reunião do briefing são perguntas criativas, que dão abertura a ideias fora da caixa (talvez por isso muitas agências hoje em dia levem toda a equipe para a reunião de briefing com o cliente). Idem para as perguntas que o planner faz em suas pesquisas com consumidores, análises de mercado, etc.

Quando o gomo da mídia ou da produção está por cima, impulsionando os outros, ele faz os gomos do atendimento, do planejamento e da criação rolarem outra vez e tomarem, eventualmente, uma nova direção: eles conhecem possibilidades de meios, formatos e execução que os demais gomos (ainda) desconhecem, possibilidades que abrem janelas para outras visões estratégicas e criativas.

Por isso é bom que os gomos corram todos juntos. Uma agência ou qualquer outra empresa que trabalha com criatividade não pode ser organizada como uma linha de montagem fordista. Não vai funcionar, a mágica não vai acontecer.

O que fazer se te colocarem numa linha de montagem dessas? Abra a roda e faça todo mundo começar a conversar o tempo todo. É a melhor maneira de evitar que lá pelo meio do trabalho, quando a coisa já estiver quase na produção, você descubra que precisa fazer um bocado de retrabalho se quiser colocar na rua a campanha arrebatadora pela qual o coração de todo publicitário bate mais forte (e o coração do seu cliente também).

9.9.16

Ativismo social é tendência

Três mega eventos, a mesma tendência: ativismo social marca o ano de 2016 na arte, na moda e na arquitetura.

A 32a. Bienal São Paulo de Arte, cujo tema é Incerteza Viva, seleciona obras que tratam das grandes questões do nosso tempo, tais como aquecimento global, perda da diversidade biológica e cultural, instabilidade econômica e política, injustiça no acesso aos recursos naturais, xenofobia e migração global, entre outras. Arte existencialista e de protesto, com forte carga política.

O primeiro dia da Semana de Moda de NY foi de militância. Feminismo e migração foram destaque nos desfiles do coletivo FTL Moda e de Johny Dar.

Na arquitetura, a Bienal de Veneza reúne trabalhados que contribuem para o bem comum e a melhoria de vida das pessoas. O Brasil participa com 15 projetos.

7.9.16

Arte, cultura e publicidade

Regra e exceção na sociedade contemporânea



"Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção" - Jean-Luc Godard. 

"Propaganda não é arte, é artesanato" - Washington Olivetto.



Héber Sales

De agora em diante, vou tratar aqui de um assunto um pouco diferente. Neste blog, já discuti sobre essa relação confusa entre arte e publicidade. Também desenvolvi uma abordagem de branding que aproxima a publicidade do ativismo cultural, o tal branding hipercultural. Agora, porém, quero trazer a arte para o centro do debate.

Cultura 


Como esclarece Geertz (1978), cultura não é exatamente regra como queria Godard, mas "tendência dominante", e raramente os grupos sociais e os indivíduos aderem de todo aos seus princípios e padrões.

Observe-se, por exemplo, o atual debate em torno da classificação de gêneros, no qual vários segmentos da sociedade propõem uma revisão da tradicional categoria feminino vs. masculino com acréscimos e até subtrações, como é o caso da moda sem gênero tão em voga entre as grandes grifes.

A dificuldade em se conseguir uma submissão unânime aos termos de uma cultura acontece porque nenhum sistema cultural, qualquer que seja ele, consegue dar conta de toda a complexidade com que lida o ser humano. Grupos e indivíduos sentem que seus padrões são, em várias circunstâncias, insuficientes para descrever, organizar e explicar a sua realidade, seja ela interna ou externa ao sujeito.

Arte


A arte, se não toda, pelo menos um certo tipo de arte (a arte moderna e contemporânea ocidental, agora globalizada), é uma denúncia dessa condição de indigência cultural: ela pode ser vista como uma crítica à cultura em favor da liberdade criativa do sujeito e, como tal, ela pode, entre outras alternativas, reembaralhar e reconstruir os valores e categorias de uma sociedade para sugerir modos de vida mais significativos, ou, de modo radicalmente cético, transcender a nossa mania de tudo classificar e rotular (discuto outros conceitos de arte neste artigo sobre publicidade e arte).

Essa parece ter sido a opção de Michel Duchamp, por exemplo, com sua arte carregada de ironia, e de muitos dos seus discípulos também, entre eles John Cage (GOMPERTZ, 2013). A transcendência proposta pela arte duchampiana visaria a realização do sujeito por meio de uma maior liberdade de pensamento e de imaginação, contra a qual estaria, até certo ponto, a cultura e até a própria arte institucionalizada dos museus, universidades e galerias.

Subjetividade e cultura


Esse conflito é um tema freudiano por excelência, o qual discuto no ensaio o mal-estar da cultura e o consolo da arte. É também um dos principais eixos do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker (2007), que trata, entre outros assuntos, de como os indivíduos podem se relacionar com a cultura em busca de um maior senso de realização.

Entre as estratégias discutidas por Becker, encontra-se justamente a atitude artística de crítica e reconstrução radical da cultura. No extremo oposto, ele coloca o sujeito exemplarmente reprimido, que neutraliza o conflito entre cultura e subjetividade por meio da negação de suas particularidades e desejos. A possibilidade de transcendência por meio da arte não é abordada por Becker, que só considera a transcendência relacionada à experiência do sagrado.

Arte e transcendência


Há, no entanto, uma dimensão sagrada na arte duchampiana, que é justamente aquela que a liga à filosofia e à prática zen-budista (TOMKINS, 2004). Essa possibilidade não é discutida por Ernest Becker. É umas das possibilidades que se pretende debater nestes ensaios a fim de montar um quadro teórico que aprofunde e amplie o entendimento sobre as relações entre arte, subjetividade e cultura.

Arte como sistema cultural


Como um contraponto à noção de arte como crítica à cultura, é preciso considerar pontos de vista como o de Clifford Geertz (1997), que vê a arte como um sistema cultural também e, assim sendo, um elemento interno ao fenômeno da cultura. A propósito, até mesmo a subjetividade pode ser vista como sendo culturalmente constituída (escrevi à respeito disso neste ensaio sobre Bakhtin, autor que apresenta de forma bastante original um dos melhores e mais bem acabados argumentos sobre o assunto).

Outras importantes referências nesta pesquisa são: a visão da arte como contracultura e a noção de que, em nossa sociedade, a contracultura é valorizada e funcional, isto é, tem um papel socialmente construído e sancionado (TIBO, 2006). A arte reafirma-se então como crítica à cultura.

Arte e publicidade


Uma vez estabelecido esse quadro teórico, ele poderá ser usado aqui para tratar de uma questão mais específica: as relações entre arte e publicidade.

Se, por um lado, como explica Carrascoza (2006 e 2014), a publicidade se apropria de estratégias discursivas e recursos criativos da arte, por outro, ela pode ser vista como mera estetização de valores já sancionados por uma determinada sociedade ou grupo social (VOLLI, 2003).

Esta atitude culturalmente passiva e subserviente da publicidade não é entretanto uma unanimidade no meio profissional e corporativo. Há muitos que, como Toscani (1996), propõem que a publicidade tenha um papel transformador da realidade social e cultural em que vivemos, promovendo uma maior realização dos consumidores enquanto sujeitos.

Em que medida discursos como esse aproximariam a publicidade da arte enquanto crítica à cultura? Quais implicações tal prática teria na vida social das marcas?

Essas são as questões que estou abordando em meu projeto para o doutorado. Compartilharei aqui ao longo dos próximos meses alguns textos sobre o assunto. Quem quiser trocar ideias sobre essa pesquisa pode entrar em contato comigo pelo e-mail hebersales@gmail.com

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Leia também: Publicidade é arte? Regra e exceção no trabalho criativo

Referências


BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CARRASCOZA, João Anzanello. A evolução do texto publicitário. São Paulo: Futura, 2006.

________________________. Estratégias criativas da publicidade: consumo e narrativa publicitária. São Paulo: Estação das Letras, 2014.

GEERTZ, Clifford. A transição para a humanidade. TAX, Sol (org.), 1966.

______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

______________. A arte como um sistema cultural. In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de arte moderna. Do impressionismo até hoje. Jorge Zahar Editor Ltda, 2013.

TIBO, Rafael Carneiro. Borboletas tatuadas: contracultura e arte contra a cultura. Anais do I Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais: nossa história com todas as letras. Mariana: UFOP, p. 1-9, 2006.

TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2004.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Ediouro Publicações, 1996.

VOLLI, Ugo. Semiótica da Publicidade. Lisboa: Edições 70, 2003.

18.3.16

O fim da era dos apps

O garimpo da Galera Unplanned no SXSW rendeu. A Camila Gadelha trouxe o melhor insight na minha opinião, uma tendência que pode mudar bastante a forma como interagimos com nossos gadgets e com os serviços e conteúdos disponíveis na internet. Confiram.

"We think the age of apps is coming to an end", quote do Anthony Green, Emerging Partnership Lead do KiK. Ele acredita que o futuro dos ecossistemas mobiles vai ser 100% conversacional. A corrida agora é pra criar bots focados em comunicação instantânea e altamente personalizada.  
· Varejo de Bate-Papo ou "Conversational Commerce" é uma realidade, não uma tendência. Quem desenvolve as coisas já tá fazendo isso acontecer mesmo e é maravilhoso. Pedir Uber pelo FB Messeger, conversar com o BOT da Sobrenatural, pedir pizza pelo KiK sem precisar falar com um humano mas conseguindo descrever todas as alterações na massa e no molho que você quiser é brilhante.  
· Todo esse movimento só é capaz de acontecer porque finalmente a gente chegou em um momento de semi-maturação de inteligência artificial pra relacionamento humano. Joguinhos como o MathCraft da Cycorp e o Life is Strange são um exemplo bem claro disso, ao mesmo tempo, linguagens intuitivas de programação como o Stephen Wolfram desenvolve e o Slack começa a usar no dia-a-dia mostram que as pessoas vão aprender lógica de programação quer elas queiram, quer não.  
· Aliás,vale conhecer a Cycorp, empresa aqui de Austin, TX que há 30 anos estuda e desenvolve aplicações usando inteligência artificial. · É só nesse momento que produtos / robôs como o Echo da Amazon conseguem de fato ganhar mercado. Porque não são mais tranqueiras que nem as primeiras telinhas touch-screen. São produtos funcionais que começam a aprender de verdade e ir além do "Siri, faz um beat-box por favor!"  
· Tudo isso começa a forçar várias empresas a reavaliarem suas estruturas internas. Como você vai ser um cartão de crédito ou um jornal sem uma equipe sinistra de analytics ou de desenvolvimento capaz de construir e alimentar um bot próprio? O Washington Post é um exemplo muito massa disso. Ao invés de ficar assistindo o mundo acontecer eles desenvolveram toda uma inteligência (e produtos) proprietários de analytics preditivos e agora além de usar tudo isso pra construir conteúdo mais relevante, também vendem pra quem tiver o dinheiro.

13.3.15

Mais poesia no big data


Imagem do Digital Poetry Group


Como qualquer coisa humana, dados são ambíguos por natureza. Cada um coloca e tira deles a informação que já está em sua cabeça, de acordo com as suas expectativas, crenças e referências. Não se trata apenas de análise, mas de projeção e de invenção também. O grande desafio do big data está então do lado de cá, na nossa mente, em seus pré-conceitos e em sua capacidade (ou incapacidade) de questionar e descobrir os vários níveis de leitura de um texto. Talvez ela precise ler mais poesia ou mais humor para praticar. Ou ambos.


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Leia também: Como a literatura pode ajudar a pesquisa de marketing.

Imagem: Digital Poetry Group.

Como a literatura pode ajudar a pesquisa de marketing

Este trecho do artigo Here's why companies are desesperante hire anthropologists explica muito bem como a literatura pode enriquecer as pesquisas de marketing.

"O problema com a pesquisa padrão [...] é que ela tem muita dificuldade de lidar com nossos preconceitos. Mesmo quando seus dados são novos, você irá lê-los de acordo com as velhas premissas [que estão na sua cabeça]. Recorrendo às ciências humanas, entretanto, você poderá superar essa barreira. 
Digamos, por exemplo, que você leia um romance de Dostoyevsky. Você não estará apenas processando as palavras de uma página, mas começando a entender o mundo dos personagens em um local específico da Rússia, em um tempo específico e de uma perspectiva específica. 
[...] Essa compreensão empática sobre um personagem é muito semelhante ao esforço de entender um consumidor [...]. É a pesquisa antropológica que nos ajuda a entender o consumidor em seu próprio mundo. 
É bem diferente da abordagem de pesquisa tradicional, baseada em levantamentos de opinião, que muitas organizações ainda usam. O problema é que nelas as pessoas revelam apenas as suas preferências. Quantos maus motoristas confessarão a um estranho que são maus motoristas? Do mesmo modo, perguntar aos consumidores de vodka porque gostam de sua marca favorita não revela necessariamente as suas reais motivações. 
Por isso é tão importante abordá-los de acordo com a etnografia, entrevistando-os mais de uma vez, observando-os em seu próprio ambiente, procurando por padrões de comportamento. A pesquisa profunda, de mais longo prazo, [contextual], revela o mundo em que as pessoas vivem e as suas reais motivações, gerando grandes insights
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Leia também: Para que serve a etnografia no marketing.

28.2.15

O mínimo denominador comum da arte


Héber Sales

Capa de disco, do tipo que discuti no post sobre semiótica e estética visual, pode ser arte? Depende do que se entende por arte. As definições variam e há um debate interminável a respeito.

Jaques Aumont, por exemplo, reconhece que a imagem, em seu modo estético, ou seja, destinada a agradar o espectador por meio "sensações (aisthésis) específicas", tornou-se quase indissociável da noção de arte, "a ponto de se confundirem as duas, e a ponto de uma imagem que visa obter um efeito estético poder se fazer passar por imagem artística". E emenda: "vide a publicidade, em que essa confusão atinge o auge" (AUMONT, 2012, p. 80-1).

Um bom ponto de partida para desfazer tal baralhada é o ensaio de Jean-Marie Schaeffer sobre o assunto. Pelas suas contas, há pelo menos seis definições de arte em circulação, sendo uma delas a que mais nos interessa agora: é obra de arte "todo artefato que "funciona" esteticamente, ficando entendido que o funcionamento estético de um artefato implica uma emancipação parcial do componente artístico [...] em relação às outras funções eventuais" (SCHAEFFER, 2004, p. 64).

De acordo com esse ponto de vista, a figura da arte deve ser "concebida como domínio de atividades a serviço de uma função estética autônoma" (SCHAEFFER, 2004, p. 66).

Obviamente não seria esse o caso da capa de um disco na publicidade, onde ela também cumpre outras funções, talvez até mais importantes: informa quem é o músico responsável pelo álbum; comunica as marcas pessoais do artista; diferencia o produto em relação aos seus similares; atrai a atenção e seduz o consumidor com o objetivo de fazê-lo comprar a obra. Em outras palavras, capa disco nesse contexto não seria arte porque não estaria a serviço de uma "função estética autônoma".

Do ponto de vista da semiótica, isso quer dizer que uma obra de arte está sempre "a propósito de seus próprios traços" (SCHAEFFER, 2004, p. 63), o que nem sempre resulta da intenção do artista apenas, mas também da "atenção estética" que a peça recebe. Máscaras africanas, lembra-nos ele - assim como capas de disco -, podem não ter sido criadas para exposição em museus e galerias, mas, a partir do momento que um curador, um crítico ou mesmo um simples espectador se propõe a apreciá-las tão somente "a propósito de seus próprios traços", elas conseguem se insinuar no domínio da arte.


Máscaras africanas exerceram forte influência sobre Pablo Picasso.


O que um artista pode fazer a respeito? A resposta de Jacques Fontanille a essa questão nos interessa muito aqui, já que um dos objetivos deste blog é discutir o trabalho criativo na sociedade contemporânea.

Para ele, a obra de arte é uma "inovação discursiva" produzida por meio da "apreensão semântica". Seus veículos privilegiados são a metáfora e a imaginação. É um ofício árduo, que exige grandes doses de desapego. A visão convencional e "cultivada" das coisas deve ser suspensa para dar lugar à "apreensão impressiva", a qual nos franqueia o acesso "às formas e aos valores por intermédio de puras qualidades perceptivas, percebidas globalmente, sem análise". Acontece então de ritmos, contrastes e formas plásticas revelarem "equivalências secretas entre figuras [...] que transportam o quadro ou o texto para um outro universo de sentido" (FONTANILLE, 2007, p. 231-2).


Esse Tao de branding, Heber Sales (2013)


Estamos finalmente salvos do tédio e da insignificância, voltamos ao domínio da poesia, que, para Greimas, é o mínimo denominador comum entre os vários tipos de arte.


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Notas

  1. A parte seguinte desta discussão, que começou no post Estética e semiótica visual: como abordar, pode ser lida em Estética, emoção e o infinito particular
  2. Sempre volto a este assunto aqui no blog. Um post antigo, que, de certo modo, serve de contraponto a este, é O que é arte afinal? 


Referências

AUMONT, Jaques. A Imagem. 16a. edição - Campinas (SP): Papirus, 2012.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

SCHAEFFER, Jean-Marie. A noção de obra de arte. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

24.2.15

Estética, emoção e o infinito particular


Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção. 
Jean-Luc Godard

Só o artista para ir mil vezes ao chão e, grogue, 
continuar lutando, a forma fora da fôrma.
Chacal


Héber Sales

Outro dia escrevi aqui que, na base da experiência estética, se encontra a analogia entre as formas de expressão e as formas de conteúdo - o sujeito fica sob o domínio da metáfora e do ritmo: a matéria significante, seja ela sonora ou visual, se organiza aos seus olhos de um jeito que lembra e ecoa a estrutura de significados do texto.

Mas o prazer estético de uma obra de arte não vem de uma metáfora qualquer. No nosso dia a dia, de tão surradas e domesticadas, algumas delas não nos espantam mais. Quem ainda se inquieta ao ouvir a prosopopéia "pé da mesa"? Mal percebemos que este ente - tão absorto em seus pensamentos lenhosos que até parece sem vida - pode se agitar e andar a qualquer momento.

SE 
Se as coisas falassem –
mas se falassem, também poderiam mentir.
Sobretudo as mais comuns e pouco apreciadas,
que finalmente conseguiriam chamar nossa atenção. 
Dá pânico pensar
o que me diria teu botão descosido,
e a ti, o que diria a chave de minha porta,
essa velha mitômana.

A experiência estética exige a surpresa desse Se, de Wislawa Szymborska: é a "imagem singular", não registrada por um "saber prévio", que causa uma "emoção viva", lembra-nos Geninasca em um ensaio genial, O olhar estético., ou, como afirma o crítico Nicolas Bourriad, em Estética Relacional, "um encontro fortuito duradouro, [que] mantém juntos momentos de subjetividade ligados a experiências singulares" (p. 27).

RESTAURADORA 
A morte é limpa.
Cruel mas limpa. 
Com seus aventais de linho
- fâmula - esfrega as vidraças. 
Tem punhos ágeis e esponjas.
Abre as janelas, o ar precipita-se
inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras. 
Porém tudo voltou a ser como antes da carne
e sua desordem.

O incidente estético não precisa ser cordial nem de fino trato ou de bom gosto; não implica necessariamente sentimentos delicados e sublimes; basta que, como ocorre nesse poema de Henriqueta Lisboa, ele desmonte a percepção convencional ou puramente lógica que bloqueia o nosso acesso à "coisa em si mesma" e ao seu efeito sensível, e então, de repente, o mundo deixa de ser o mundo ordenado e previsível do senso comum, com suas referências manjadas a inúmeros particulares, ou o mundo das deduções, que só verifica a conformidade ou não-conformidade dos saberes em relação a premissas pré-estabelecidas e partilhadas, e os seus elementos, como os apreendemos nos dicionários, enciclopédias e manuais - separados uns dos outros -, se diluem, se fundem e soam como as notas musicais em um acorde: não se pode mais distingui-los entre si, nem mesmo da emoção que a sua harmonia nos causa.


Composição VIII, de Wassily Kandinsky: "A música é o maior professor".

"Separada de de toda a finalidade pragmática, a percepção desemboca sobre a contemplação desinteressada que coincide com a experiência eufórica da solidariedade do sujeito e do mundo, de um mundo para o sujeito, que se constrói concomitantemente sensível e inteligível. A "imagem singular" tem isso de particular, pois ela assegura a passagem de um múltiplo particular a uma unidade geral [...]. Ela nos remete a um uso poético, e não mais utilitário da linguagem. [...] As figuras do mundo, longe de corresponder aos significados da linguagem, funcionam como significantes cujo significado não é outro que os estados modais do sujeito" (GENINASCA, 2004, p. 42).

O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha a minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular 
(MARISA MONTE / ARNALDO ANTUNES / CARLINHOS BROWN) 

~

Para ir além

BOURRIAD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. Essa obra discute as novas formas de arte que surgiram a partir dos anos 1990, as quais, segundo o autor, não podem ser compreendidas pelas teorias estéticas existentes até então. A arte contemporânea é relacional, "toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado" (p. 19).

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007. É um manual. Suas considerações sobre o discurso estético estão na seção "Apreensões e racionalidades", que começa na página 229.

GENINASCA, Jacques. O olhar estético. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004. O ensaio corresponde a um capítulo do livro organizado pela Ana Claudia de Oliveira. Vale à pena lê-lo todo.

21.2.15

Estética e semiótica visual: como abordar


Héber Sales

Do ponto de vista da semiótica greimasciana, que tem se dedicado muito ao assunto tanto na figura do seu precursor, Algirdas Julien Greimas, como na de seus continuadores, especialmente, no caso da visualidade e da arte, Jean-Marie Floch, Jacques Geninasca, Eric Landowski e Jacques Fontanille, o discurso estético caracteriza-se por ser carregado de poeticidade, termo que nessa disciplina é definido de modo bastante preciso: trata-se de uma relação peculiar entre o significante e o significado, chamada de semi-simbolismo, na qual o significante se liga ao significado de forma não apenas arbitrária, mas motivada também.

Complicado? Nem tanto. Um exemplo prático deixará tudo mais claro. Consideremos a palavra "gato". Ela possui um significante, constituído pela sua sonoridade e pelo seu registro gráfico, e um significado, que corresponde à ideia que a sua audição ou visão evoca na mente do indivíduo letrado em português: um pequeno mamífero, felino, geralmente doméstico, etc.

Pois bem, a linguística entende, desde Saussure, que não há nada no significado da palavra "gato" nem no animal em si que determine ou motive a sua representação por meio desses fonemas. Prova disso é o fato do bichano receber nomes diferentes em outras línguas: mace (albanês), kissa (finlandês), neko (japonês), e assim por diante. Daí dizermos que, em uma relação simbólica, típica das línguas naturais, o vínculo entre o significante e o significado é arbitrário, não motivado.

No caso do semi-simbolismo, esse elo não resulta apenas da convenção social. As formas do plano de expressão indicam por si mesmas, sem que seja necessário recorrer ao dicionário, as noções em jogo no conteúdo do texto. Um poeminha famoso ilustra a artimanha:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra. 
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Notem como, nesse poema do Drummond, a recorrência de determinadas formas sonoras sugere por si mesma, independente do significado lexical das palavras correspondentes, o bloqueio que a pedra no meio do caminho representa para o enunciador. Até mesmo um estrangeiro, sem conhecimento algum da nossa língua, perceberia, pela repetição insistente de uma mesma sequência fônica, que alguém ou algo entrou em looping.

O conceito de semi-simbolismo foi proposto por Jean-Marie Floch para uso na crítica de artes plásticas, campo em que é indispensável no estudo das obras. Alguns exemplos bem didáticos dessa abordagem podem ser encontrados nos livros Semiótica Visual - os percursos do olhar e Análise do Texto Visual - a construção da imagem, ambos escritos por Antonio Vicente Pietroforte.

Vejamos um deles, a capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette, discutida em Análise do Texto Visual.

Capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette.

Nessa imagem, o plano de expressão envolve componentes topológicos, eidéticos e cromáticos. Por meio da análise de seus contrastes, Pietroforte explica como o plano de expressão está configurado nessa peça.

  • "Quanto à forma, que pode ser descrita de acordo com a categoria plástica eidética homogêneo vs. heterogêneo, é possível opor o portão aos músicos de modo que o primeiro tem forma homogênea, definido por uma regularidade de linhas horizontais, e os últimos têm forma heterogênea, com poses e contornos distintos" (p. 28).
  • "Quanto à cor, no caso articulada pela categoria plástica cromática monocromático vs. colorido, há uma oposição entre o portão monocromático e as diversas cores dos músicos e de seus trajes" (p. 28).
  • "Por fim, a categoria plástica topológica. articulada e, horizontal vs. vertical organiza, respectivamente, a disposição das linhas do portão e dos músicos" (p. 28).

Para Pietroforte, esses contrastes visuais, que correspondem no plano do conteúdo às figuras portão vs. músicos, sugerem também, por analogia, alguns significados culturalmente relacionados ao jazz: a tensão entre os termos identidade vs. alteridade, categoria semântica ligada nesse estilo musical ao equilíbrio dinâmico entre tema vs. improviso - melhor do que falar, dá pra ouvir como, a partir de uma melodia, acompanhada de harmonia e ritmo definidos, os músicos aprontam seus malabarismos, ou seja, variações individuais de uma estrutura comum (o tema) que dá "cara" à performance:





Notas

  1. Assumi neste texto, que o leitor já entende que o significado das coisas se estabelece por meio de oposições ou contrastes. Para uma explicação rápida dessa ideia, sugiro ler aqui mesmo no blog a primeira parte do post Análise semiótica em netnografias de marca.
  2. No post Estética, emoção e o infinito particular, discuto como o semi-simbolismo engaja e inspira o apreciador da obra de arte.


Referências

FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l'oleil et l'esprit. Paris-Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2010.

_____________. Análise do texto visual: a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2011.

19.2.15

Arte anti-ironia

Segundo artista, em poucos dias, que vejo questionar a cultura da ironia, tão dominante nestes tempos pós-modernos. O primeiro foi o escritor-revelação peruano Jeremías Gamboa. Agora leio no Estadão este depoimento contundente do Iñárritu, diretor de Birdman, barbada para o Oscar deste ano:
"[...] não escrevi este argumento para atender à maior fonte de cultura popular agora, que é a ironia e o cinismo. Vejo isso nos meus adolescentes; tudo o que é sério, tudo o que é primitivo, é absolutamente rejeitado. Tudo tem que ser levado intelectualmente e com comentário sobre isso. Estou cansado disso. Tentei ser verdadeiro e honesto diante da questão. Seriamente engraçado significa ser verdadeiro."

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

As declarações de Jeremías Gamboa seguem a mesma toada, a começar pelo título do seu romance Contar Tudo, recém lançado no Brasil:
"[...] é um livro sem ironia. Depois de algum tempo escrevendo, me dei conta que não era o tipo de autor com humor ácido ou com uma visão irônica das coisas. Pelo contrário. Acredito ter sido testemunha de uma sobrevalorização da ironia e da presença potente de artistas que não a usam, mas que se aproximam à mais pura sinceridade e fé, como os músicos do Arcade Fire. Nesse sentido, estou próximo de uma ideia do escritor israelense David Grossman, que advoga por uma “ingenuidade adquirida”. Parece que em um tempo tão acossado pela ironia, e, sobretudo, pelo cinismo, podemos fazer do romance um campo de resistência para esse tipo de ingenuidade.[...] Me interessa que a literatura ofereça também luzes dentro do contraste da experiência humana, que tente vislumbrar possibilidades de entendimento ou de relações entre pessoas."
O debate não é exatamente pós-moderno como já demonstrou Octavio Paz. Para quem quiser rastrear as idas e vindas da ironia na arte, desde o século XIX até o ocaso das vanguardas no final dos anos 1960, recomendo fortemente a leitura do seu livro Os Filhos do Barro, um ensaio riquíssimo sobre as origens e a evolução da poesia moderna.

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Outros posts sobre arte neste blog:
Sobre a dimensão social da arte
O que é arte afinal?