21.2.15

Estética e semiótica visual: como abordar


Héber Sales

Do ponto de vista da semiótica greimasciana, que tem se dedicado muito ao assunto tanto na figura do seu precursor, Algirdas Julien Greimas, como na de seus continuadores, especialmente, no caso da visualidade e da arte, Jean-Marie Floch, Jacques Geninasca, Eric Landowski e Jacques Fontanille, o discurso estético caracteriza-se por ser carregado de poeticidade, termo que nessa disciplina é definido de modo bastante preciso: trata-se de uma relação peculiar entre o significante e o significado, chamada de semi-simbolismo, na qual o significante se liga ao significado de forma não apenas arbitrária, mas motivada também.

Complicado? Nem tanto. Um exemplo prático deixará tudo mais claro. Consideremos a palavra "gato". Ela possui um significante, constituído pela sua sonoridade e pelo seu registro gráfico, e um significado, que corresponde à ideia que a sua audição ou visão evoca na mente do indivíduo letrado em português: um pequeno mamífero, felino, geralmente doméstico, etc.

Pois bem, a linguística entende, desde Saussure, que não há nada no significado da palavra "gato" nem no animal em si que determine ou motive a sua representação por meio desses fonemas. Prova disso é o fato do bichano receber nomes diferentes em outras línguas: mace (albanês), kissa (finlandês), neko (japonês), e assim por diante. Daí dizermos que, em uma relação simbólica, típica das línguas naturais, o vínculo entre o significante e o significado é arbitrário, não motivado.

No caso do semi-simbolismo, esse elo não resulta apenas da convenção social. As formas do plano de expressão indicam por si mesmas, sem que seja necessário recorrer ao dicionário, as noções em jogo no conteúdo do texto. Um poeminha famoso ilustra a artimanha:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra. 
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Notem como, nesse poema do Drummond, a recorrência de determinadas formas sonoras sugere por si mesma, independente do significado lexical das palavras correspondentes, o bloqueio que a pedra no meio do caminho representa para o enunciador. Até mesmo um estrangeiro, sem conhecimento algum da nossa língua, perceberia, pela repetição insistente de uma mesma sequência fônica, que alguém ou algo entrou em looping.

O conceito de semi-simbolismo foi proposto por Jean-Marie Floch para uso na crítica de artes plásticas, campo em que é indispensável no estudo das obras. Alguns exemplos bem didáticos dessa abordagem podem ser encontrados nos livros Semiótica Visual - os percursos do olhar e Análise do Texto Visual - a construção da imagem, ambos escritos por Antonio Vicente Pietroforte.

Vejamos um deles, a capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette, discutida em Análise do Texto Visual.

Capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette.

Nessa imagem, o plano de expressão envolve componentes topológicos, eidéticos e cromáticos. Por meio da análise de seus contrastes, Pietroforte explica como o plano de expressão está configurado nessa peça.

  • "Quanto à forma, que pode ser descrita de acordo com a categoria plástica eidética homogêneo vs. heterogêneo, é possível opor o portão aos músicos de modo que o primeiro tem forma homogênea, definido por uma regularidade de linhas horizontais, e os últimos têm forma heterogênea, com poses e contornos distintos" (p. 28).
  • "Quanto à cor, no caso articulada pela categoria plástica cromática monocromático vs. colorido, há uma oposição entre o portão monocromático e as diversas cores dos músicos e de seus trajes" (p. 28).
  • "Por fim, a categoria plástica topológica. articulada e, horizontal vs. vertical organiza, respectivamente, a disposição das linhas do portão e dos músicos" (p. 28).

Para Pietroforte, esses contrastes visuais, que correspondem no plano do conteúdo às figuras portão vs. músicos, sugerem também, por analogia, alguns significados culturalmente relacionados ao jazz: a tensão entre os termos identidade vs. alteridade, categoria semântica ligada nesse estilo musical ao equilíbrio dinâmico entre tema vs. improviso - melhor do que falar, dá pra ouvir como, a partir de uma melodia, acompanhada de harmonia e ritmo definidos, os músicos aprontam seus malabarismos, ou seja, variações individuais de uma estrutura comum (o tema) que dá "cara" à performance:





Notas

  1. Assumi neste texto, que o leitor já entende que o significado das coisas se estabelece por meio de oposições ou contrastes. Para uma explicação rápida dessa ideia, sugiro ler aqui mesmo no blog a primeira parte do post Análise semiótica em netnografias de marca.
  2. No post Estética, emoção e o infinito particular, discuto como o semi-simbolismo engaja e inspira o apreciador da obra de arte.


Referências

FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l'oleil et l'esprit. Paris-Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2010.

_____________. Análise do texto visual: a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário