Héber Sales
Algumas histórias interessam mais à uma marca pós-moderna, que tenha alto teor simbólico e valor de marca, do tipo que se torna um ícone cultural. São histórias que podem ser contadas por qualquer negócio, por mais local que seja. Não é preciso um grande budget. Uma rede de mercados de bairro, suponhamos.
O setor cresce continuamente nos grandes centros há alguns anos. A que se deve o boom? Não há uma só explicação. Depende do referencial que você usa (sim, o referencial importa na pesquisa de propaganda tanto quanto na pesquisa científica). Se não, vejamos.
Caso você seja um economista, provavelmente talvez vá entender a coisa pelo prisma da relação custo/benefício e concluirá que, para compras menores, o tempo e o dinheiro gastos para ir até um atacadão não compensa os preços extremamente baixos. Melhor comprar o pão, o leite e alguma guloseima no mercado de bairro mesmo.
Se você for um psicólogo, é bem capaz de pensar em coisas como: os pais compram tais guloseimas quando vão para casa como uma estratégia para aplacar a culpa que sentem por passar tanto tempo longe dos pequenos.
Por outro lado, em um estudo antropológico, o comportamento será encarado como um ritual que fixa significados que dão sentido à vida pessoal e familiar dos envolvidos. Chegar em casa com um quitute diferente, o pão quentinho e um pouco mais de manteiga, que acabou rápido demais desde a última compra do mês, é uma pequena celebração por um dia que termina bem, com todos juntos mais uma vez, embora o mundo lá fora esteja tão difícil e perigoso.
Qualquer uma dessas três pesquisas poderia inspirar uma campanha? Depende da marca, do seu posicionamento ou autoridade cultural e da sua estratégia competitiva. Especulemos.
Uma rede local de pequenos mercados de bairro dificilmente teria a escala necessária para bater a concorrência praticando os preços mais baixos da categoria. Dependendo do desconto, não convenceria nem mesmo o comprador a se desviar do seu caminho um pouco para ir até o bairro vizinho. Ela não existe para vender somente produtos, mas conveniência.
Se o seu sortimento tem alguns produtos diferenciados, únicos, com uma qualidade notável, e o seu pessoal recebe os clientes com alegria e camaradagem, usar o apelo sugerido pelo psicólogo pode ser depressivo, disfórico. Ninguém vai as compras para se entristecer com reflexões angustiantes, não é mesmo? A menos que esteja pagando por filmes de terror e dramas densos.
Ao invés de falar de problemas e neuroses, não faz muito mais sentido falar dos significados descobertos pelo antropólogo em uma etnografia, os quais dão um sentido reconfortante e animador para vida familiar?
Obviamente, há outros tipos de campanhas no mundo da publicidade e da propaganda, mas não para uma marca que queira ganhar as pessoas pela emoção e pelo afeto, se tornar uma lovemark e se firmar como ícone cultural. Ela tem que praticar branding hipercultural.
Leia ainda: Ligando os pontos na publicidade de um museu.
27.4.18
25.4.18
O signo ideológico na era das mídias sociais: pós-verdade, fake news e plurilinguismo
Héber Sales
A noção de signo ideológico é a perspectiva a partir da qual costumo encarar o debate sobre 'pós-verdade' e 'fake news' na era das mídias sociais.
Para Bakhtin/Volochinov, o signo funciona como uma arena em que diferentes grupos sociais se enfrentam em inesgotáveis negociações de sentido. A diversidade ideológica observada em tais disputas pode ser relacionada, no âmbito do pensamento bakhtiniano, ao conceito de plurilinguismo ou polifonia: uma língua seria na realidade composta por várias línguas, cada uma delas relativa a uma classe social. Longe de ser um problema, a variação linguística daí resultante é o que mantém a cultura viva, em movimento, pois os efeitos de sentido de um enunciado dependem em grande parte das relações dialógicas que ele mantém com outros enunciados, tanto aqueles que o precedem como os que a ele respondem em uma cadeia discursiva.
A partir dessas considerações, questiono até que ponto a cultura da pós-verdade é de fato uma ameaça à racionalidade humana. A circulação de 'fatos alternativos' nas mídias sociais, que, em algumas situações, são considerados 'fake news', seria mesmo um fenômeno estranho à nossa condição de seres sociais ou se trata somente de mais uma evidência da natureza ideológica do signo e da linguagem? A propósito, qual seria precisamente a diferença entre 'fatos alternativos' e 'fake news'?
E o que dizer das 'guerras culturais' que tomaram conta da rede? Não seriam elas uma manifestação extrema do dialogismo e da polifonia que caracterizam toda língua viva? Finalmente, quanto à verdade, como conciliar a nossa busca por conhecimento nas ciências humanas com a possibilidade de que, como propõe Mikhail Bakhtin, os signos por meio dos quais representamos a realidade não somente a refletem como também a refratam?
Neste momento, preparo uma conferência sobre o assunto para o XI Workshop do Grupo de Estudo e Pesquisa em Linguagem e Subjetividade (GELS), sediado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Nela, discutirei como, em alguns casos concretos, as ideias do filósofo russo e dos seus colegas do Círculo podem nos ajudar a abordar tais perguntas. Espero compartilhar em seguida aqui mesmo no blog todo o conteúdo da palestra.
Leia também: O artista, o cientista e o evangelista.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. (Revista). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
_______________. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017 (1a. edição).
_______________; VOLOCHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahub e Yara Frateschi Vieira. 16.ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
A noção de signo ideológico é a perspectiva a partir da qual costumo encarar o debate sobre 'pós-verdade' e 'fake news' na era das mídias sociais.
Para Bakhtin/Volochinov, o signo funciona como uma arena em que diferentes grupos sociais se enfrentam em inesgotáveis negociações de sentido. A diversidade ideológica observada em tais disputas pode ser relacionada, no âmbito do pensamento bakhtiniano, ao conceito de plurilinguismo ou polifonia: uma língua seria na realidade composta por várias línguas, cada uma delas relativa a uma classe social. Longe de ser um problema, a variação linguística daí resultante é o que mantém a cultura viva, em movimento, pois os efeitos de sentido de um enunciado dependem em grande parte das relações dialógicas que ele mantém com outros enunciados, tanto aqueles que o precedem como os que a ele respondem em uma cadeia discursiva.
A partir dessas considerações, questiono até que ponto a cultura da pós-verdade é de fato uma ameaça à racionalidade humana. A circulação de 'fatos alternativos' nas mídias sociais, que, em algumas situações, são considerados 'fake news', seria mesmo um fenômeno estranho à nossa condição de seres sociais ou se trata somente de mais uma evidência da natureza ideológica do signo e da linguagem? A propósito, qual seria precisamente a diferença entre 'fatos alternativos' e 'fake news'?
E o que dizer das 'guerras culturais' que tomaram conta da rede? Não seriam elas uma manifestação extrema do dialogismo e da polifonia que caracterizam toda língua viva? Finalmente, quanto à verdade, como conciliar a nossa busca por conhecimento nas ciências humanas com a possibilidade de que, como propõe Mikhail Bakhtin, os signos por meio dos quais representamos a realidade não somente a refletem como também a refratam?
Neste momento, preparo uma conferência sobre o assunto para o XI Workshop do Grupo de Estudo e Pesquisa em Linguagem e Subjetividade (GELS), sediado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Nela, discutirei como, em alguns casos concretos, as ideias do filósofo russo e dos seus colegas do Círculo podem nos ajudar a abordar tais perguntas. Espero compartilhar em seguida aqui mesmo no blog todo o conteúdo da palestra.
Leia também: O artista, o cientista e o evangelista.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. (Revista). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
_______________. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017 (1a. edição).
_______________; VOLOCHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahub e Yara Frateschi Vieira. 16.ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
21.1.18
Liberdade de expressão e apologia na arte
Héber Sales
O Rodrigo Cássio Oliveira, filósofo e colunista do Estadão, é uma das pessoas com quem mais aprendo hoje em dia nesse debate sobre arte e liberdade de expressão, embora, conforme ficará claro mais adiante, eu tenha algumas ressalvas às teses dele.
Antes, porém, para melhor entendimento do que escrevo neste post, recomendo a leitura prévia de dois textos dele: MC Diguinho e as contradições da esquerda e Liberdade de expressão: respostas a algumas objeções.
De um modo geral, concordo com o seu argumento de que a busca por "espaços seguros" tende a descambar para um autoritarismo repleto de preconceitos sobre o outro.
Também admito que é um equívoco subordinar juízos estéticos a juízos morais, embora não por motivos ontológicos, mas sócio-históricos. Explico-me a seguir.
Não vejo como separar completamente uma coisa da outra, pois, assim como argumenta Bakhtin, considero que arte, religião, ciência, direito, política, etc, são parte da unidade da cultura humana e tornam-se campos peculiares justamente pelos contrastes que há entre eles dentro de tal unidade.
Assim, enxergo que a grande autonomia que a arte têm hoje é uma conquista social, política e histórica da criatividade humana, que se manifesta também no discurso da vida, do cotidiano, onde as pessoas exercem sua liberdade por meio de jogos de linguagem cheios de paródias, ironias, metáforas, dentre outros, isto é, afastando-se da ditadura da literalidade e desafiando as forças centrípetas que negam a diversidade e o livre arbítrio humanos.
A propósito, a existência da literalidade pode ser questionada aqui. Parece-me, na verdade, um conceito eivado de ideologia. Precisamos lembrar então de estudos linguísticos que vêem toda a linguagem humana como sendo de natureza metafórica, a começar pelo já citado Bakhtin e seguindo com Barthes, dentre outros.
Outro ponto que ainda acho válido discutir é o uso do modo imperativo em discursos persuasivos. Na propaganda, por exemplo, há estudos que indicam a força do imperativo, como também há pesquisas que apontam para a importância do poético no trabalho de influência (o João Carrascoza, em seus livros sobre redação e estratégias criativas na publicidade, escreve bastante sobre essa diferença entre o discurso apolíneo e o discurso dionisíaco).
Aliás, a a linguagem figurada é um recurso empregado abundantemente em livros sagrados bastante persuasivos como a Bíblia, o Alcorão, os sutras, além de narrativas mitológicas que fazem parte da construção social da realidade de muitos povos (os gregos na época de Homero por exemplo).
Enfim, não é preciso ser literal, nem imperativo, para exercer uma influência profunda sobre as pessoas - talvez seja o contrário disso.
Segundo interpreto, nos textos, o Rodrigo, reconhece a dimensão social da arte e do entretenimento enquanto manifestação estética. É o que ocorre quando ele menciona a base social a partir da qual o funk se apresenta como uma manifestação estética, aspecto que merece mais consideração no debate público que há hoje em dia sobre o tema.
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Intervenção de Banksy em New York (2013) |
O Rodrigo Cássio Oliveira, filósofo e colunista do Estadão, é uma das pessoas com quem mais aprendo hoje em dia nesse debate sobre arte e liberdade de expressão, embora, conforme ficará claro mais adiante, eu tenha algumas ressalvas às teses dele.
Antes, porém, para melhor entendimento do que escrevo neste post, recomendo a leitura prévia de dois textos dele: MC Diguinho e as contradições da esquerda e Liberdade de expressão: respostas a algumas objeções.
De um modo geral, concordo com o seu argumento de que a busca por "espaços seguros" tende a descambar para um autoritarismo repleto de preconceitos sobre o outro.
Também admito que é um equívoco subordinar juízos estéticos a juízos morais, embora não por motivos ontológicos, mas sócio-históricos. Explico-me a seguir.
Não vejo como separar completamente uma coisa da outra, pois, assim como argumenta Bakhtin, considero que arte, religião, ciência, direito, política, etc, são parte da unidade da cultura humana e tornam-se campos peculiares justamente pelos contrastes que há entre eles dentro de tal unidade.
Assim, enxergo que a grande autonomia que a arte têm hoje é uma conquista social, política e histórica da criatividade humana, que se manifesta também no discurso da vida, do cotidiano, onde as pessoas exercem sua liberdade por meio de jogos de linguagem cheios de paródias, ironias, metáforas, dentre outros, isto é, afastando-se da ditadura da literalidade e desafiando as forças centrípetas que negam a diversidade e o livre arbítrio humanos.
A propósito, a existência da literalidade pode ser questionada aqui. Parece-me, na verdade, um conceito eivado de ideologia. Precisamos lembrar então de estudos linguísticos que vêem toda a linguagem humana como sendo de natureza metafórica, a começar pelo já citado Bakhtin e seguindo com Barthes, dentre outros.
Outro ponto que ainda acho válido discutir é o uso do modo imperativo em discursos persuasivos. Na propaganda, por exemplo, há estudos que indicam a força do imperativo, como também há pesquisas que apontam para a importância do poético no trabalho de influência (o João Carrascoza, em seus livros sobre redação e estratégias criativas na publicidade, escreve bastante sobre essa diferença entre o discurso apolíneo e o discurso dionisíaco).
Aliás, a a linguagem figurada é um recurso empregado abundantemente em livros sagrados bastante persuasivos como a Bíblia, o Alcorão, os sutras, além de narrativas mitológicas que fazem parte da construção social da realidade de muitos povos (os gregos na época de Homero por exemplo).
Enfim, não é preciso ser literal, nem imperativo, para exercer uma influência profunda sobre as pessoas - talvez seja o contrário disso.
Segundo interpreto, nos textos, o Rodrigo, reconhece a dimensão social da arte e do entretenimento enquanto manifestação estética. É o que ocorre quando ele menciona a base social a partir da qual o funk se apresenta como uma manifestação estética, aspecto que merece mais consideração no debate público que há hoje em dia sobre o tema.
11.1.18
Para onde vai a sociedade em 2018
Héber Sales
Fim de ano. Queremos saber o que nos aguarda em 2018. Como podemos descobrir o que vai ser da sociedade nos próximos anos? Notem o seguinte.
Quanto mais urbanos ficamos, mais valor damos à natureza. Quanto mais virtuais, mais buscamos a vida real. Quanto mais fragmentados nas redes sociais on-line, mais assistimos à TV aberta.
Como se vê, há um modo relativamente confiável de prever certo tipo de mudança: uma vez consolidada, uma tendência alimentará em breve uma força contrária.
O princípio não é novo. O "Tao Te Ching", escrito 3 séculos A.C., já falava dele. A teoria dialógica de Mikhail Bakhtin, no século passado, também, com sua ideia de interação entre forças centrípetas e forças centrífugas no campo sociocultural.
Esse co-surgimento de tendências opostas, porém, não é um dado da natureza, mas depende de como a nossa mente discursiva e linguageira compreende os fenômenos: dialogicamente.
O movimento da Nova Direita no Brasil, por exemplo, só pode ser plenamente entendido como uma resposta a muitos anos de hegemonia da esquerda no meio intelectual e artístico e, durante o governo do PT, nas políticas públicas.
Diante de sua ascensão, podemos esperar um declínio da esquerda? Acho improvável. É mais certo haver uma reinvenção da esquerda, o que nos levaria à próxima etapa do jogo dialógico: o surgimento de uma Nova Esquerda.
Para quem acha que a Nova Direita está avançando irresistívelmente, recomendo alguns exercícios rápidos no Google Trends, onde é fácil observar que o interesse por conteúdos de esquerda nos últimos anos cresce no mesmo ritmo acelerado do interesse em informações da direita.
Obviamente, não se trata apenas de uma disputa ideológica. Interesses de classe podem levar a situações como a que assistimos durante o governo Lula: muitos dos seus aliados, que eram (e são) conservadores, podiam até não concordar com propostas como a inclusão de debates sobre gênero no currículo escolar, mas não se opunham abertamente a elas por priorizarem outros ganhos nessa aliança com o petismo.
Outra evidência histórica das relações entre cultura, poder e economia é o surgimento e o fortalecimento do sistema de moda no ocidente desde o século XV. A quem interessava a valorização da novidade em detrimento da tradição e do imobilismo? À emergente burguesia mercantil, que enxerga na nova orientação ideológica uma justificativa e uma oportunidade de se tornar uma classe dominante.
É por coisas assim que eu sugiro: se você quiser descobrir qual será a próxima onda, busque por forças centrífugas que estão desafiando, com base em um mindset alternativo, tendências já consolidadas e reconhecidas. Comece por aquelas forças que se opõe a elas mais frontalmente. Um monitoramento competente do que as pessoas estão buscando, comentando e fazendo na internet pode ajudar muito nisso.
Para ir além nos conceitos que apliquei neste texto, recomendo três leituras:
- Dois livros de Bakhtin/Volochinov: "O Freudismo" e "Marxismo e Filosofia da Linguagem", que propõem o dialogismo e discutem a dinâmica das forças socioideológicas.
- O livro "Cultura e Consumo", de Grant McCracken, que propõem um modelo de manufatura e movimento de significados na sociedade do consumo.
Fim de ano. Queremos saber o que nos aguarda em 2018. Como podemos descobrir o que vai ser da sociedade nos próximos anos? Notem o seguinte.
Quanto mais urbanos ficamos, mais valor damos à natureza. Quanto mais virtuais, mais buscamos a vida real. Quanto mais fragmentados nas redes sociais on-line, mais assistimos à TV aberta.
Como se vê, há um modo relativamente confiável de prever certo tipo de mudança: uma vez consolidada, uma tendência alimentará em breve uma força contrária.
O princípio não é novo. O "Tao Te Ching", escrito 3 séculos A.C., já falava dele. A teoria dialógica de Mikhail Bakhtin, no século passado, também, com sua ideia de interação entre forças centrípetas e forças centrífugas no campo sociocultural.
Esse co-surgimento de tendências opostas, porém, não é um dado da natureza, mas depende de como a nossa mente discursiva e linguageira compreende os fenômenos: dialogicamente.
O movimento da Nova Direita no Brasil, por exemplo, só pode ser plenamente entendido como uma resposta a muitos anos de hegemonia da esquerda no meio intelectual e artístico e, durante o governo do PT, nas políticas públicas.
Diante de sua ascensão, podemos esperar um declínio da esquerda? Acho improvável. É mais certo haver uma reinvenção da esquerda, o que nos levaria à próxima etapa do jogo dialógico: o surgimento de uma Nova Esquerda.
Para quem acha que a Nova Direita está avançando irresistívelmente, recomendo alguns exercícios rápidos no Google Trends, onde é fácil observar que o interesse por conteúdos de esquerda nos últimos anos cresce no mesmo ritmo acelerado do interesse em informações da direita.
Obviamente, não se trata apenas de uma disputa ideológica. Interesses de classe podem levar a situações como a que assistimos durante o governo Lula: muitos dos seus aliados, que eram (e são) conservadores, podiam até não concordar com propostas como a inclusão de debates sobre gênero no currículo escolar, mas não se opunham abertamente a elas por priorizarem outros ganhos nessa aliança com o petismo.
Outra evidência histórica das relações entre cultura, poder e economia é o surgimento e o fortalecimento do sistema de moda no ocidente desde o século XV. A quem interessava a valorização da novidade em detrimento da tradição e do imobilismo? À emergente burguesia mercantil, que enxerga na nova orientação ideológica uma justificativa e uma oportunidade de se tornar uma classe dominante.
É por coisas assim que eu sugiro: se você quiser descobrir qual será a próxima onda, busque por forças centrífugas que estão desafiando, com base em um mindset alternativo, tendências já consolidadas e reconhecidas. Comece por aquelas forças que se opõe a elas mais frontalmente. Um monitoramento competente do que as pessoas estão buscando, comentando e fazendo na internet pode ajudar muito nisso.
Para ir além nos conceitos que apliquei neste texto, recomendo três leituras:
- Dois livros de Bakhtin/Volochinov: "O Freudismo" e "Marxismo e Filosofia da Linguagem", que propõem o dialogismo e discutem a dinâmica das forças socioideológicas.
- O livro "Cultura e Consumo", de Grant McCracken, que propõem um modelo de manufatura e movimento de significados na sociedade do consumo.
2.12.17
O artista, o cientista e o evangelista
Héber Sales
O artista, o cientista e o evangelista. Três intérpretes da condição humana, três diferentes destinos do ato de interpretação na unidade da cultura.
Sobre as dificuldades e conflitos do amor, por exemplo, o cientista quer identificar a realidade desse sentimento, construir uma teoria que o reflita fielmente - ainda que esse fragmento da realidade, para que se torne objeto significante, precise encontrar seu lugar em um sistema cultural qualquer. Ele pode dizer, como fez Mira y López, que o amor "é, por definição, um processo complexo e contraditório que não pode ser situado nem limitado concretamente em um determinado setor conceitual".
Diante de tal complexidade, o evangelista vai sugerir uma regra de conduta moral que proteja a nossa paz de espírito e, com intenção semelhante à de um legislador, a harmonia da comunidade: é bom que o homem não toque em mulher, mas, se for para viver abrasado, é melhor que se case, escreveu o apóstolo Paulo em sua primeira carta aos coríntios.
O artista, por sua vez, argumenta Mikhail Bakhtin em O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma, vai unir e completar intuitivamente o conteúdo que na vida eticamente vivida apresenta-se dilacerado - constante mandamento insatisfeito -, transferindo-o para um novo plano de significado e valor, para uma existência de beleza isolada e acabada, axiologicamente segura de si. Como neste famoso poema de Camões, eu diria.
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
![]() |
"Il poeta e il filosofo", Giorgio de Chirico (1916) |
O artista, o cientista e o evangelista. Três intérpretes da condição humana, três diferentes destinos do ato de interpretação na unidade da cultura.
Sobre as dificuldades e conflitos do amor, por exemplo, o cientista quer identificar a realidade desse sentimento, construir uma teoria que o reflita fielmente - ainda que esse fragmento da realidade, para que se torne objeto significante, precise encontrar seu lugar em um sistema cultural qualquer. Ele pode dizer, como fez Mira y López, que o amor "é, por definição, um processo complexo e contraditório que não pode ser situado nem limitado concretamente em um determinado setor conceitual".
Diante de tal complexidade, o evangelista vai sugerir uma regra de conduta moral que proteja a nossa paz de espírito e, com intenção semelhante à de um legislador, a harmonia da comunidade: é bom que o homem não toque em mulher, mas, se for para viver abrasado, é melhor que se case, escreveu o apóstolo Paulo em sua primeira carta aos coríntios.
O artista, por sua vez, argumenta Mikhail Bakhtin em O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma, vai unir e completar intuitivamente o conteúdo que na vida eticamente vivida apresenta-se dilacerado - constante mandamento insatisfeito -, transferindo-o para um novo plano de significado e valor, para uma existência de beleza isolada e acabada, axiologicamente segura de si. Como neste famoso poema de Camões, eu diria.
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
5.3.17
Design thinking para publicitários
(working paper)
Héber Sales
Ouvimos cada vez mais falar de design thinking na publicidade. Para muitos, parece ser uma grande novidade, uma tendência que precisamos seguir. Quem, porém, for estudar o assunto com mais profundidade, vai notar que a publicidade já faz design thinking há muito tempo, e, muitas vezes, de modo muito mais radical. Explico-me.
O design thinking baseia-se na suposição de que, para sermos mais criativos, precisamos dividir o nosso trabalho em duas etapas: 1) geração de ideias; 2) seleção de ideias. O arranjo foi proposto por Edward de Bono. No seu livro Lateral Thinking (2010), ele sugere que, para evitar bloqueios criativos e a fixação nas soluções mais óbvias e convencionais, devemos estimular primeiro o pensamento divergente, o qual explora livremente, sem críticas de terceiros ou auto-críticas, as mais diversas possibilidades de solução. Só depois disso, deve-se passar à análise e à síntese das ideias, escolhendo a que for melhor.
Pois bem, no design thinking, duplica-se essa estrutura criativa básica, aplicando ambos os tipos de pensamento tanto no diagnóstico quanto na solução de problemas. Graficamente, essa abordagem é representada por um duplo diamante (COUNCIL, 2007).
A imagem abaixo resume como o duplo diamante funciona no design e na publicidade. Nos próximos parágrafos, explico os paralelos entre as duas disciplinas.
Na fase de diagnóstico, que corresponde ao primeiro diamante, o design thinking recorre ao pensamento divergente para explorar o contexto e as mais diferentes explicações para o problema que a equipe de projeto deve resolver (etapa de imersão). Depois disso, por meio do pensamento convergente, analisa os dados acumulados em busca de padrões que revelam a real natureza do problema que está sendo investigado (etapa de síntese).
A publicidade possui uma abordagem bastante similar, a qual corresponde ao trabalho do setor de planejamento das agências. O que no design thinking é chamado de imersão, no planejamento publicitário chamamos simplesmente de pesquisa - é com base nela que depois, através do pensamento convergente, vamos selecionar alguns insights que, apresentados no briefing, servirão para orientar e inspirar o pessoal de criação.
O trabalho da criação, por sua vez, tem o seu próprio diamante, cuja primeira metade corresponde ao esforço de gerar e explorar ideias, buscando referências e "rafeando" (ou rascunhando) sempre, Depois disso, o processo torna-se convergente e envolve o desenvolvimento de conceitos que serão testados e aprimorados antes de se começar a produzir a campanha propriamente dita.
No design thinking, há um processo similar a esse, que se divide respectivamente nas etapas de ideação e de prototipação. É o seu segundo diamante da estrutura do duplo diamante.
Quer dizer então que o design thinking joga o mesmo jogo que jogamos na publicidade, só que, como comentou um aluno meu, "com esquema tático e nome bonitinho"?
Curiosamente, essa frase irreverente já nos dá uma pista da diferença entre as duas disciplinas. O design thinking é mais instrumental e sistemático, com uma caixa cheia de ferramentas (FERREIRA e PINHEIRO, 2013). Algumas podem ser bastante úteis na publicidade, outras servem mais para modelar produtos, serviços e negócios.
Na publicidade, há um foco maior na mensagem e na comunicação; no design, a ênfase está na experiência do consumidor (antes, durante e depois da compra e uso do produto ou serviço).
Na publicidade, buscamos surpreender o interlocutor com uma conversa inusitada, interessante e estimulante; no design, a ênfase está na adequação de uma solução às necessidades do usuário.
Na publicidade, podemos começar uma entrevista sem roteiro nenhum ou até fazer uma entrevista invertida, só para não limitar a conversa ao nosso ponto de vista e à nossa agenda, o que poderia criar um viés e limitar as descobertas. No design, geralmente há esquemas e check-lists para tudo.
Enfim, a publicidade é mais "transgressora", irreverente e iconoclasta, eu diria, assim como a frase do meu aluno, que, aliás, já trabalha na área de criação - como vocês podem ver, tem tudo a ver com ele.
A publicidade, a propósito, muitas vezes olha com desconfiança para as abordagens mais estruturadas, típicas do design, pois, para ela, a falta de método é, em si mesma, um bom método para produzir aqueles imprevistos que nos levam às descobertas mais inesperadas e, por isso até, potencialmente mais disruptivas. Nesse aspecto, como discuti num outro ensaio (SALES, 2017), o publicitário age muito mais como um artista do que como um designer.
Para deixar mais claros todos esses pontos, estamos lapidando, no grupo de estudos que coordeno, o duplo diamante da publicidade. A imagem abaixo mostra os seus principais planos ou dimensões. Explicarei cada uma das suas facetas num próximo ensaio. Por enquanto, segue um breve resumo. Além das referências citadas ao final, uma fonte importante para compreender esta abordagem é o modelo de branding hipercultural que desenvolvo numa pesquisa paralela à esta.
Todo o processo se inicia com a seguinte pretensão do cliente da agência: ele quer obter uma certa resposta junto a um ou mais públicos determinados.
Ao percorrer o duplo diamante, definimos o que dizer no primeiro diamante e como dizer no segundo.
Na fase de pesquisa, usamos métodos que nos permitem compreender em profundidade as pessoas com quem desejamos conversar, especialmente os conflitos que vivem e como respondem a eles por meio de mitos de identidade. Queremos saber o que sentem e o que pensam a respeito, quais valores às guiam nesses dramas e projetos, como agem nesse processo. Precisamos descobrir também como essas pessoas percebem os vários concorrentes nesse contexto, que tipo de aliados eles são para elas na aventura de suas vidas, como eles se posicionam em relação aos valores que norteiam as suas escolhas.
Na fase de briefing, selecionamos um dos muitos mitos de identidade que animam e orientam as escolhas das pessoas com quem queremos conversar. Qual deles encarna os valores que a marca compartilha com o seu público? Qual tem mais a ver com o posicionamento e a autoridade cultural da marca? Esse é o mito que irá inspirar a história que será contada na campanha.
Na etapa de criação, já no segundo diamante, imaginamos várias histórias alternativas, que podem ser registradas inicialmente na forma de rafes e pitchs. Exploramos também os contextos em que essas histórias farão mais sentido e como elas poderão ser enriquecidas e enfatizadas pelos mais diversos meios, formatos, elementos do mix de marketing (preço, produto e ponto) e de comunicação (relações públicas, eventos, etc). Além do pensamento divergente, outras abordagens criativas são acionadas aqui, entre elas o pensamento homoespacial e a livre associação de ideias. Precisamos bolar uma história que traga um ponto de vista singular sobre o mito de identidade proposto pelo briefing, um ponto de vista que seja relevante para o público e que revele a originalidade, a maestria e a relevância da própria marca, transformando-a desse modo num daqueles autores virtuais favoritos, sobre os quais as pessoas conversam com empolgação.
Finalmente, na etapa de conceituação, os rafes e pitchs gerados na fase anterior são testados, aprimorados e finalizados. Em primeiro lugar, tendo em vista o modo como o público pode receber e interpretar cada uma das histórias concebidas (se a mensagem chama atenção, se é clara, se "prende", se persuade, se alcança a resposta desejada enfim). Além disso, é preciso considerar como a tal impacto pode variar de acordo com as diferentes possibilidades de manifestação (ou realização) das histórias e com a eficiência dos meios considerados.
COUNCIL, Design. Eleven lessons: Managing design in eleven global companies-desk research report. Design Council, 2007.
DE BONO, Edward. Lateral thinking: a textbook of creativity. Penguin UK, 2010.
FERREIRA, Luis; PINHEIRO, Tennyson. Design Thinking Brasil: empatia, colaboração e experimentação para pessoas, negócios e sociedade. Elsevier Brasil, 2011.
SALES, R. Héber. Branding hipercultural. 2016.
______________. Creative hacking: o processo criativo na arte e no branding. Working paper, 2017.
Héber Sales
Ouvimos cada vez mais falar de design thinking na publicidade. Para muitos, parece ser uma grande novidade, uma tendência que precisamos seguir. Quem, porém, for estudar o assunto com mais profundidade, vai notar que a publicidade já faz design thinking há muito tempo, e, muitas vezes, de modo muito mais radical. Explico-me.
O design thinking baseia-se na suposição de que, para sermos mais criativos, precisamos dividir o nosso trabalho em duas etapas: 1) geração de ideias; 2) seleção de ideias. O arranjo foi proposto por Edward de Bono. No seu livro Lateral Thinking (2010), ele sugere que, para evitar bloqueios criativos e a fixação nas soluções mais óbvias e convencionais, devemos estimular primeiro o pensamento divergente, o qual explora livremente, sem críticas de terceiros ou auto-críticas, as mais diversas possibilidades de solução. Só depois disso, deve-se passar à análise e à síntese das ideias, escolhendo a que for melhor.
Pois bem, no design thinking, duplica-se essa estrutura criativa básica, aplicando ambos os tipos de pensamento tanto no diagnóstico quanto na solução de problemas. Graficamente, essa abordagem é representada por um duplo diamante (COUNCIL, 2007).
A imagem abaixo resume como o duplo diamante funciona no design e na publicidade. Nos próximos parágrafos, explico os paralelos entre as duas disciplinas.
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O duplo diamante no design e na publicidade |
Diagnóstico e planejamento
Na fase de diagnóstico, que corresponde ao primeiro diamante, o design thinking recorre ao pensamento divergente para explorar o contexto e as mais diferentes explicações para o problema que a equipe de projeto deve resolver (etapa de imersão). Depois disso, por meio do pensamento convergente, analisa os dados acumulados em busca de padrões que revelam a real natureza do problema que está sendo investigado (etapa de síntese).
A publicidade possui uma abordagem bastante similar, a qual corresponde ao trabalho do setor de planejamento das agências. O que no design thinking é chamado de imersão, no planejamento publicitário chamamos simplesmente de pesquisa - é com base nela que depois, através do pensamento convergente, vamos selecionar alguns insights que, apresentados no briefing, servirão para orientar e inspirar o pessoal de criação.
Soluções criativas
O trabalho da criação, por sua vez, tem o seu próprio diamante, cuja primeira metade corresponde ao esforço de gerar e explorar ideias, buscando referências e "rafeando" (ou rascunhando) sempre, Depois disso, o processo torna-se convergente e envolve o desenvolvimento de conceitos que serão testados e aprimorados antes de se começar a produzir a campanha propriamente dita.
No design thinking, há um processo similar a esse, que se divide respectivamente nas etapas de ideação e de prototipação. É o seu segundo diamante da estrutura do duplo diamante.
Design thinking e publicidade
Quer dizer então que o design thinking joga o mesmo jogo que jogamos na publicidade, só que, como comentou um aluno meu, "com esquema tático e nome bonitinho"?
Curiosamente, essa frase irreverente já nos dá uma pista da diferença entre as duas disciplinas. O design thinking é mais instrumental e sistemático, com uma caixa cheia de ferramentas (FERREIRA e PINHEIRO, 2013). Algumas podem ser bastante úteis na publicidade, outras servem mais para modelar produtos, serviços e negócios.
Na publicidade, há um foco maior na mensagem e na comunicação; no design, a ênfase está na experiência do consumidor (antes, durante e depois da compra e uso do produto ou serviço).
Na publicidade, buscamos surpreender o interlocutor com uma conversa inusitada, interessante e estimulante; no design, a ênfase está na adequação de uma solução às necessidades do usuário.
Na publicidade, podemos começar uma entrevista sem roteiro nenhum ou até fazer uma entrevista invertida, só para não limitar a conversa ao nosso ponto de vista e à nossa agenda, o que poderia criar um viés e limitar as descobertas. No design, geralmente há esquemas e check-lists para tudo.
Enfim, a publicidade é mais "transgressora", irreverente e iconoclasta, eu diria, assim como a frase do meu aluno, que, aliás, já trabalha na área de criação - como vocês podem ver, tem tudo a ver com ele.
A publicidade, a propósito, muitas vezes olha com desconfiança para as abordagens mais estruturadas, típicas do design, pois, para ela, a falta de método é, em si mesma, um bom método para produzir aqueles imprevistos que nos levam às descobertas mais inesperadas e, por isso até, potencialmente mais disruptivas. Nesse aspecto, como discuti num outro ensaio (SALES, 2017), o publicitário age muito mais como um artista do que como um designer.
O duplo diamante da publicidade
Para deixar mais claros todos esses pontos, estamos lapidando, no grupo de estudos que coordeno, o duplo diamante da publicidade. A imagem abaixo mostra os seus principais planos ou dimensões. Explicarei cada uma das suas facetas num próximo ensaio. Por enquanto, segue um breve resumo. Além das referências citadas ao final, uma fonte importante para compreender esta abordagem é o modelo de branding hipercultural que desenvolvo numa pesquisa paralela à esta.
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O duplo diamante na publicidade |
Todo o processo se inicia com a seguinte pretensão do cliente da agência: ele quer obter uma certa resposta junto a um ou mais públicos determinados.
Ao percorrer o duplo diamante, definimos o que dizer no primeiro diamante e como dizer no segundo.
Na fase de pesquisa, usamos métodos que nos permitem compreender em profundidade as pessoas com quem desejamos conversar, especialmente os conflitos que vivem e como respondem a eles por meio de mitos de identidade. Queremos saber o que sentem e o que pensam a respeito, quais valores às guiam nesses dramas e projetos, como agem nesse processo. Precisamos descobrir também como essas pessoas percebem os vários concorrentes nesse contexto, que tipo de aliados eles são para elas na aventura de suas vidas, como eles se posicionam em relação aos valores que norteiam as suas escolhas.
Na fase de briefing, selecionamos um dos muitos mitos de identidade que animam e orientam as escolhas das pessoas com quem queremos conversar. Qual deles encarna os valores que a marca compartilha com o seu público? Qual tem mais a ver com o posicionamento e a autoridade cultural da marca? Esse é o mito que irá inspirar a história que será contada na campanha.
Na etapa de criação, já no segundo diamante, imaginamos várias histórias alternativas, que podem ser registradas inicialmente na forma de rafes e pitchs. Exploramos também os contextos em que essas histórias farão mais sentido e como elas poderão ser enriquecidas e enfatizadas pelos mais diversos meios, formatos, elementos do mix de marketing (preço, produto e ponto) e de comunicação (relações públicas, eventos, etc). Além do pensamento divergente, outras abordagens criativas são acionadas aqui, entre elas o pensamento homoespacial e a livre associação de ideias. Precisamos bolar uma história que traga um ponto de vista singular sobre o mito de identidade proposto pelo briefing, um ponto de vista que seja relevante para o público e que revele a originalidade, a maestria e a relevância da própria marca, transformando-a desse modo num daqueles autores virtuais favoritos, sobre os quais as pessoas conversam com empolgação.
Finalmente, na etapa de conceituação, os rafes e pitchs gerados na fase anterior são testados, aprimorados e finalizados. Em primeiro lugar, tendo em vista o modo como o público pode receber e interpretar cada uma das histórias concebidas (se a mensagem chama atenção, se é clara, se "prende", se persuade, se alcança a resposta desejada enfim). Além disso, é preciso considerar como a tal impacto pode variar de acordo com as diferentes possibilidades de manifestação (ou realização) das histórias e com a eficiência dos meios considerados.
Referências:
COUNCIL, Design. Eleven lessons: Managing design in eleven global companies-desk research report. Design Council, 2007.
DE BONO, Edward. Lateral thinking: a textbook of creativity. Penguin UK, 2010.
FERREIRA, Luis; PINHEIRO, Tennyson. Design Thinking Brasil: empatia, colaboração e experimentação para pessoas, negócios e sociedade. Elsevier Brasil, 2011.
SALES, R. Héber. Branding hipercultural. 2016.
______________. Creative hacking: o processo criativo na arte e no branding. Working paper, 2017.
24.2.17
Ligando os pontos na publicidade de um museu
Héber Sales
É quase impossível mudar uma ideia enraizada na mente das pessoas. O truque é: para persuadir, concorde primeiro. Depois mostre o que a sua marca ou serviço tem a ver com o conceito que o consumidor já tem na cabeça.
"Museu é coisa tradicional". É o que pensa muita gente. Você não vai mudar isso. Vai apenas buscar as palavras bacanas associadas ao "tradicional".
Você é um bom planner. Tem ampla cultura geral, é bem informado. Sabe de tudo um pouco.
Sabe que, na moda, novas coleções resgatam cores, cortes, estilos, peças do passado. Seu público também sabe disso. O passado sugere tendências, é fonte de "inspiração", uma palavrinha que algumas pessoas associam a museu também.
Além disso, o "antigo" é, em nossa cultura (e em muitas outras), associado a sabedoria e mistério. Ora, não existem gurus adolescentes, muito menos crianças, não é?
(Mas no filme Matrix, sim, do mesmo jeito que em Dexter há um herói que é um psicopata serial killer. Ah, esses criativos... Eles são mesmo uns danados, ligam os pontos de um jeito diferente).
O guru, o sábio, via de regra, é velho, tão velho que ninguém sabe direito a idade dele. Talvez seja um imortal. Como o mestre Yoda, na saga Star Wars, ou o Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão.
O museu pode ser reposicionado como uma fonte de inspiração? Como um desses gurus imortais? Como um hub ou um radar de tendências? A proposta da última Bienal era esta. É também o que a gente vê na arquitetura de muitos museus hoje em dia, como o Guggenheim Bilbao.
Aliás, em um exercício de pesquisa, alguém associou "museu" à palavra "perspectivas". É por aí que vamos reposicionar a categoria? E se for um museu com o maior acervo, a maior quantidade de exposições? Ele oferece mais perspectivas? É um super radar de tendências?
Notem, o planner está conseguindo ligar pontos muito diferentes porque é um curioso de plantão, um observador atento e participante da vida cultural, sempre bem informado sobre tudo - não vive só a publicidade, vive muito a rua, o mundo, várias comunidades, transita por inúmeras "tribos".
Como ele poderia ser mais sistemático nesse estudo? Que métodos, técnicas e ferramentas usaria?
Aqui mesmo no blog, já expliquei como a etnografia pode ajudar no post como fazer uma netnografia (ou etnografia online). Você pode ver ainda como funciona a análise semiótica nesse tipo de pesquisa.
E aqui está um livro de monitoramento e análise de mídias sociais que apresenta a netnografia e alguns outros métodos de pesquisa online (é free).
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Guggenheim Bilbao |
É quase impossível mudar uma ideia enraizada na mente das pessoas. O truque é: para persuadir, concorde primeiro. Depois mostre o que a sua marca ou serviço tem a ver com o conceito que o consumidor já tem na cabeça.
"Museu é coisa tradicional". É o que pensa muita gente. Você não vai mudar isso. Vai apenas buscar as palavras bacanas associadas ao "tradicional".
Você é um bom planner. Tem ampla cultura geral, é bem informado. Sabe de tudo um pouco.
Sabe que, na moda, novas coleções resgatam cores, cortes, estilos, peças do passado. Seu público também sabe disso. O passado sugere tendências, é fonte de "inspiração", uma palavrinha que algumas pessoas associam a museu também.
Além disso, o "antigo" é, em nossa cultura (e em muitas outras), associado a sabedoria e mistério. Ora, não existem gurus adolescentes, muito menos crianças, não é?
(Mas no filme Matrix, sim, do mesmo jeito que em Dexter há um herói que é um psicopata serial killer. Ah, esses criativos... Eles são mesmo uns danados, ligam os pontos de um jeito diferente).
O guru, o sábio, via de regra, é velho, tão velho que ninguém sabe direito a idade dele. Talvez seja um imortal. Como o mestre Yoda, na saga Star Wars, ou o Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão.
O museu pode ser reposicionado como uma fonte de inspiração? Como um desses gurus imortais? Como um hub ou um radar de tendências? A proposta da última Bienal era esta. É também o que a gente vê na arquitetura de muitos museus hoje em dia, como o Guggenheim Bilbao.
Aliás, em um exercício de pesquisa, alguém associou "museu" à palavra "perspectivas". É por aí que vamos reposicionar a categoria? E se for um museu com o maior acervo, a maior quantidade de exposições? Ele oferece mais perspectivas? É um super radar de tendências?
Notem, o planner está conseguindo ligar pontos muito diferentes porque é um curioso de plantão, um observador atento e participante da vida cultural, sempre bem informado sobre tudo - não vive só a publicidade, vive muito a rua, o mundo, várias comunidades, transita por inúmeras "tribos".
Como ele poderia ser mais sistemático nesse estudo? Que métodos, técnicas e ferramentas usaria?
Aqui mesmo no blog, já expliquei como a etnografia pode ajudar no post como fazer uma netnografia (ou etnografia online). Você pode ver ainda como funciona a análise semiótica nesse tipo de pesquisa.
E aqui está um livro de monitoramento e análise de mídias sociais que apresenta a netnografia e alguns outros métodos de pesquisa online (é free).
6.2.17
Creative hacking: o processo criativo na arte e no branding
Héber Sales
Este ensaio deve muito ao crítico Will Gompertz, que, no livro Pense como um artista (2015), explica o processo criativo na arte. Para os veteranos, a obra não traz tanta novidade. Porém, sua leitura vale à pena por esmiuçar o método de vários artistas e obras famosas. Além disso, é uma boa oportunidade para organizar as ideias sobre o tema. Já para os calouros, recomendo: é uma obra para ter na cabeceira.
A estrutura do que apresento a seguir baseia-se em grande parte no processo sugerido por Gompertz. Há, no entanto, outras influências, além da minha própria experiência: aquelas que reuni em meu programa de pesquisa sobre arte, cultura e publicidade, entre as quais destaco Bakhtin (2014), Greimas (2004), Floch (1985), Schaeffer (2004) e Volli (2003).
A propósito desse programa, sugiro, como um pré-requisito ao estudo deste texto, a leitura do ensaio Publicidade é arte? Vai ajudar a esclarecer as semelhanças e diferenças entre esses dois ofícios que aqui se combinam mais uma vez.
O que isso tudo tem a ver com hacking? Como veremos mais adiante, no capítulo 3, quando se trata de criatividade, o roubo é a alma do negócio.
Para continuar lendo, clique aqui.
"Os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam."
Pablo Picasso
Este ensaio deve muito ao crítico Will Gompertz, que, no livro Pense como um artista (2015), explica o processo criativo na arte. Para os veteranos, a obra não traz tanta novidade. Porém, sua leitura vale à pena por esmiuçar o método de vários artistas e obras famosas. Além disso, é uma boa oportunidade para organizar as ideias sobre o tema. Já para os calouros, recomendo: é uma obra para ter na cabeceira.
A estrutura do que apresento a seguir baseia-se em grande parte no processo sugerido por Gompertz. Há, no entanto, outras influências, além da minha própria experiência: aquelas que reuni em meu programa de pesquisa sobre arte, cultura e publicidade, entre as quais destaco Bakhtin (2014), Greimas (2004), Floch (1985), Schaeffer (2004) e Volli (2003).
A propósito desse programa, sugiro, como um pré-requisito ao estudo deste texto, a leitura do ensaio Publicidade é arte? Vai ajudar a esclarecer as semelhanças e diferenças entre esses dois ofícios que aqui se combinam mais uma vez.
O que isso tudo tem a ver com hacking? Como veremos mais adiante, no capítulo 3, quando se trata de criatividade, o roubo é a alma do negócio.
Para continuar lendo, clique aqui.
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"Coca-Cola 3 bottles" (1962), Andy Warhol |
7.11.16
Filosofia da arte à luz da semiótica
O que é arte? Os debates a respeito são infindáveis e, até hoje, muito marcados por divergências. Qualquer livro de introdução ao assunto procura enfatizá-las muito bem. O que nem sempre fica claro nesse tipo de obra, entretanto, são certos consensos implícitos entre as várias teorias. Neste working paper, discuto alguns deles por meio da releitura semiótica de um desses trabalhos: o livro A Arte, de Rogério Duarte (2012). Continue lendo
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Orange car crash fourteen times (1963), Andy Warhol |
14.10.16
Comece com um rascunho, continue com ele
A pesquisa como um protótipo
"Não comece com uma folha em branco. Comece com um rascunho." - John Hegarty
Assim como uma semente, cada pesquisa nasce como um protótipo: ela é um todo orgânico, que replica em miniatura o artigo ou livro que poderá ser um dia.
Às vezes isso acontece de modo mais claro e acabado. Outras vezes, de um jeito mais vago. Mas sempre acontece. Se você não perceber logo a existência desse mundo conceitual e não tratá-lo como algo que, apesar de ínfimo, é completo, ele se desintegrará e desaparecerá irremediavelmente nas profundezas do inominável.
Falemos de modo prático, um passo de cada vez.
O primeiro protótipo
Sempre que fazemos uma pergunta, junto com ela já aparece uma provável resposta. No senso comum, a confusão entre esses termos é tão grande que a dúvida costuma mergulhar numa daquelas teorias populares e sumir.
Os ditados são um bom exemplo disso. A frase "a beleza está nos olhos de quem vê" é uma pequena tese que, no dia a dia, é repetida à exaustão sem que, na maioria da vezes, alguém questione se não haveria mesmo um senso universal de beleza inerente ao ser humano, o qual asseguraria a admiração dos mais variados povos de diferentes épocas diante de cenas como as do monte Fuji com seu topo coberto de neve, ou mesmo, caso admitíssemos a relatividade da beleza, nos perguntássemos o que faz com que as pessoas tenham gostos tão variados entre si.
O senso comum geralmente não pára para pensar nessas coisas. Algumas mentes mais inquietas e céticas, sim, entre elas a do cientista e a do filósofo - a do artista e a do poeta também.
O primeiro passo de todo pesquisador é pois extrair a dúvida de dentro de afirmações do tipo. Como se faz isso? Com as seguintes perguntas.
Onde está o ponto cego de uma teoria qualquer, seja ela popular, científica ou filosófica, que dá uma resposta duvidosa sobre algum assunto que lhe interessa? O que ela não vê? O que pretende ver mas ainda não enxerga direito? Ainda mais delicado: o que ela deixa de fora do seu campo de visão simplesmente porque a confunde e mina a sua autoridade?
Pronto, é desse jeito que construímos um primeiro protótipo feito de duas peças: uma teoria, que oferece uma resposta (uma hipótese) para a questão que nos intriga, e pelo menos uma pergunta que a desafia. A partir daí, colocamos o nosso protótipo para rodar, sujeitando-o a atritos, torções, pressão e calor. Assim, veremos até onde ele pode chegar sem maiores danos ou falhas.
Um exemplo prático
Na verdade, não se trata de um protótipo feito de duas peças, mas de dois conjuntos de peças. Tanto a teoria quanto a questão de pesquisa são constituídas, cada uma delas, por uma série de elementos articulados entre si. Eles precisam ser reconhecidos, polidos, ajustados e lubrificados para a máquina funcionar direito. Recorrer a quem entende do assunto ajuda muito nessa hora.
Eis aqui um exemplo prático: o primeiro protótipo de uma pesquisa que venho tocando sobre arte e publicidade na sociedade contemporânea. Notem como nessa primeira versão uma teoria do cineasta Jean-Luc Godard é colocada em julgamento logo de cara, quando começo a trabalhar o seu primeiro elemento, o conceito de cultura. Nessa tarefa, contei com a ajuda do antropólogo Clifford Geertz, com que eu já tinha um bom entrosamento desde os tempos do meu mestrado.
Na sequência do texto, outros elementos ganham forma do mesmo modo. Em alguns casos, eles são tão complexos que vão para uma oficina só deles. É o que ocorre quando remeto o leitor a um outro ensaio meu por meio de um link.
Um desses casos é o texto sobre o divórcio do artista com a cultura. Na verdade, ele parece uma peça, mas é o próprio protótipo dando uma das suas primeiras voltinhas. Vejam como nele as outras peças também aparecem e rodam, especialmente as três que estão na parte dianteira desta frase que se move e resume o projeto: subjetividade-cultura-e-arte-na-publicidade-contemporânea.
A voltinha, no caso, é um passeio por um livro do filósofo russo Mikhail Bakhtin, terreno em que a primeira versão da minha pesquisa, a qual, conforme descrevo no texto sobre o mal-estar da cultura e o consolo da arte, deve muito a uma ajudinha de Freud, revela algumas faltas e fragilidades.
O tempo não para
Não é nada que me desespere, muito pelo contrário. Pois é assim mesmo que a brincadeira funciona - é a graça da coisa. Depois de cada saída, o projeto de pesquisa volta para a garagem, onde passa por consertos e reformas. Em algum momento, um novo protótipo, maior, mais completo e bem acabado, é montado e se inicia uma outra bateria de testes, que podem ser por outros livros ou por dados empíricos coletados sistematicamente.
Um dia, de protótipo, ele pode virar um modelo comercial e comparecer a um congresso, uma revista ou uma prateleira de livraria, sem que, no entanto, esteja concluído para sempre. Você mesmo pode revisá-lo nas próximas edições, ou algum leitor seu pode desmontá-lo e refazê-lo de um jeito um pouco diferente, desenvolvendo dessa forma o seu próprio artefato.
É como dizia Cazuza, "o tempo não para".
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