Como qualquer coisa humana, dados são ambíguos por natureza. Cada um coloca e tira deles a informação que já está em sua cabeça, de acordo com as suas expectativas, crenças e referências. Não se trata apenas de análise, mas de projeção e de invenção também. O grande desafio do big data está então do lado de cá, na nossa mente, em seus pré-conceitos e em sua capacidade (ou incapacidade) de questionar e descobrir os vários níveis de leitura de um texto. Talvez ela precise ler mais poesia ou mais humor para praticar. Ou ambos.
"O problema com a pesquisa padrão [...] é que ela tem muita dificuldade de lidar com nossos preconceitos. Mesmo quando seus dados são novos, você irá lê-los de acordo com as velhas premissas [que estão na sua cabeça]. Recorrendo às ciências humanas, entretanto, você poderá superar essa barreira.
Digamos, por exemplo, que você leia um romance de Dostoyevsky. Você não estará apenas processando as palavras de uma página, mas começando a entender o mundo dos personagens em um local específico da Rússia, em um tempo específico e de uma perspectiva específica.
[...] Essa compreensão empática sobre um personagem é muito semelhante ao esforço de entender um consumidor [...]. É a pesquisa antropológica que nos ajuda a entender o consumidor em seu próprio mundo.
É bem diferente da abordagem de pesquisa tradicional, baseada em levantamentos de opinião, que muitas organizações ainda usam. O problema é que nelas as pessoas revelam apenas as suas preferências. Quantos maus motoristas confessarão a um estranho que são maus motoristas? Do mesmo modo, perguntar aos consumidores de vodka porque gostam de sua marca favorita não revela necessariamente as suas reais motivações.
Por isso é tão importante abordá-los de acordo com a etnografia, entrevistando-os mais de uma vez, observando-os em seu próprio ambiente, procurando por padrões de comportamento. A pesquisa profunda, de mais longo prazo, [contextual], revela o mundo em que as pessoas vivem e as suas reais motivações, gerando grandes insights"
Capa de disco, do tipo que discuti no post sobre semiótica e estética visual, pode ser arte? Depende do que se entende por arte. As definições variam e há um debate interminável a respeito.
Jaques Aumont, por exemplo, reconhece que a imagem, em seu modo estético, ou seja, destinada a agradar o espectador por meio "sensações (aisthésis) específicas", tornou-se quase indissociável da noção de arte, "a ponto de se confundirem as duas, e a ponto de uma imagem que visa obter um efeito estético poder se fazer passar por imagem artística". E emenda: "vide a publicidade, em que essa confusão atinge o auge" (AUMONT, 2012, p. 80-1).
Um bom ponto de partida para desfazer tal baralhada é o ensaio de Jean-Marie Schaeffer sobre o assunto. Pelas suas contas, há pelo menos seis definições de arte em circulação, sendo uma delas a que mais nos interessa agora: é obra de arte "todo artefato que "funciona" esteticamente, ficando entendido que o funcionamento estético de um artefato implica uma emancipação parcial do componente artístico [...] em relação às outras funções eventuais" (SCHAEFFER, 2004, p. 64).
De acordo com esse ponto de vista, a figura da arte deve ser "concebida como domínio de atividades a serviço de uma função estética autônoma" (SCHAEFFER, 2004, p. 66).
Obviamente não seria esse o caso da capa de um disco na publicidade, onde ela também cumpre outras funções, talvez até mais importantes: informa quem é o músico responsável pelo álbum; comunica as marcas pessoais do artista; diferencia o produto em relação aos seus similares; atrai a atenção e seduz o consumidor com o objetivo de fazê-lo comprar a obra. Em outras palavras, capa disco nesse contexto não seria arte porque não estaria a serviço de uma "função estética autônoma".
Do ponto de vista da semiótica, isso quer dizer que uma obra de arte está sempre "a propósito de seus próprios traços" (SCHAEFFER, 2004, p. 63), o que nem sempre resulta da intenção do artista apenas, mas também da "atenção estética" que a peça recebe. Máscaras africanas, lembra-nos ele - assim como capas de disco -, podem não ter sido criadas para exposição em museus e galerias, mas, a partir do momento que um curador, um crítico ou mesmo um simples espectador se propõe a apreciá-las tão somente "a propósito de seus próprios traços", elas conseguem se insinuar no domínio da arte.
Máscaras africanas exerceram forte influência sobre Pablo Picasso.
O que um artista pode fazer a respeito? A resposta de Jacques Fontanille a essa questão nos interessa muito aqui, já que um dos objetivos deste blog é discutir o trabalho criativo na sociedade contemporânea.
Para ele, a obra de arte é uma "inovação discursiva" produzida por meio da "apreensão semântica". Seus veículos privilegiados são a metáfora e a imaginação. É um ofício árduo, que exige grandes doses de desapego. A visão convencional e "cultivada" das coisas deve ser suspensa para dar lugar à "apreensão impressiva", a qual nos franqueia o acesso "às formas e aos valores por intermédio de puras qualidades perceptivas, percebidas globalmente, sem análise". Acontece então de ritmos, contrastes e formas plásticas revelarem "equivalências secretas entre figuras [...] que transportam o quadro ou o texto para um outro universo de sentido" (FONTANILLE, 2007, p. 231-2).
Esse Tao de branding, Heber Sales (2013)
Estamos finalmente salvos do tédio e da insignificância, voltamos ao domínio da poesia, que, para Greimas, é o mínimo denominador comum entre os vários tipos de arte.
Sempre volto a este assunto aqui no blog. Um post antigo, que, de certo modo, serve de contraponto a este, é O que é arte afinal?
Referências
AUMONT, Jaques. A Imagem. 16a. edição - Campinas (SP): Papirus, 2012.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
SCHAEFFER, Jean-Marie. A noção de obra de arte. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção.
Jean-Luc Godard
Só o artista para ir mil vezes ao chão e, grogue,
continuar lutando, a forma fora da fôrma.
Chacal
Héber Sales
Outro dia escrevi aqui que, na base da experiência estética, se encontra a analogia entre as formas de expressão e as formas de conteúdo - o sujeito fica sob o domínio da metáfora e do ritmo: a matéria significante, seja ela sonora ou visual, se organiza aos seus olhos de um jeito que lembra e ecoa a estrutura de significados do texto.
Mas o prazer estético de uma obra de arte não vem de uma metáfora qualquer. No nosso dia a dia, de tão surradas e domesticadas, algumas delas não nos espantam mais. Quem ainda se inquieta ao ouvir a prosopopéia "pé da mesa"? Mal percebemos que este ente - tão absorto em seus pensamentos lenhosos que até parece sem vida - pode se agitar e andar a qualquer momento.
SE
Se as coisas falassem –
mas se falassem, também poderiam mentir.
Sobretudo as mais comuns e pouco apreciadas,
que finalmente conseguiriam chamar nossa atenção.
Dá pânico pensar
o que me diria teu botão descosido,
e a ti, o que diria a chave de minha porta,
essa velha mitômana.
A experiência estética exige a surpresa desse Se, de Wislawa Szymborska: é a "imagem singular", não registrada por um "saber prévio", que causa uma "emoção viva", lembra-nos Geninasca em um ensaio genial, O olhar estético., ou, como afirma o crítico Nicolas Bourriad, em Estética Relacional, "um encontro fortuito duradouro, [que] mantém juntos momentos de subjetividade ligados a experiências singulares" (p. 27).
RESTAURADORA
A morte é limpa.
Cruel mas limpa.
Com seus aventais de linho
- fâmula - esfrega as vidraças.
Tem punhos ágeis e esponjas.
Abre as janelas, o ar precipita-se
inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras.
Porém tudo voltou a ser como antes da carne
e sua desordem.
O incidente estético não precisa ser cordial nem de fino trato ou de bom gosto; não implica necessariamente sentimentos delicados e sublimes; basta que, como ocorre nesse poema de Henriqueta Lisboa, ele desmonte a percepção convencional ou puramente lógica que bloqueia o nosso acesso à "coisa em si mesma" e ao seu efeito sensível, e então, de repente, o mundo deixa de ser o mundo ordenado e previsível do senso comum, com suas referências manjadas a inúmeros particulares, ou o mundo das deduções, que só verifica a conformidade ou não-conformidade dos saberes em relação a premissas pré-estabelecidas e partilhadas, e os seus elementos, como os apreendemos nos dicionários, enciclopédias e manuais - separados uns dos outros -, se diluem, se fundem e soam como as notas musicais em um acorde: não se pode mais distingui-los entre si, nem mesmo da emoção que a sua harmonia nos causa.
Composição VIII, de Wassily Kandinsky: "A música é o maior professor".
"Separada de de toda a finalidade pragmática, a percepção desemboca sobre a contemplação desinteressada que coincide com a experiência eufórica da solidariedade do sujeito e do mundo, de um mundo para o sujeito, que se constrói concomitantemente sensível e inteligível. A "imagem singular" tem isso de particular, pois ela assegura a passagem de um múltiplo particular a uma unidade geral [...]. Ela nos remete a um uso poético, e não mais utilitário da linguagem. [...] As figuras do mundo, longe de corresponder aos significados da linguagem, funcionam como significantes cujo significado não é outro que os estados modais do sujeito" (GENINASCA, 2004, p. 42).
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha a minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
(MARISA MONTE / ARNALDO ANTUNES / CARLINHOS BROWN)
~
Para ir além
BOURRIAD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. Essa obra discute as novas formas de arte que surgiram a partir dos anos 1990, as quais, segundo o autor, não podem ser compreendidas pelas teorias estéticas existentes até então. A arte contemporânea é relacional, "toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado" (p. 19).
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007. É um manual. Suas considerações sobre o discurso estético estão na seção "Apreensões e racionalidades", que começa na página 229.
GENINASCA, Jacques. O olhar estético. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004. O ensaio corresponde a um capítulo do livro organizado pela Ana Claudia de Oliveira. Vale à pena lê-lo todo.
Do ponto de vista da semiótica greimasciana, que tem se dedicado muito ao assunto tanto na figura do seu precursor, Algirdas Julien Greimas, como na de seus continuadores, especialmente, no caso da visualidade e da arte, Jean-Marie Floch, Jacques Geninasca, Eric Landowski e Jacques Fontanille, o discurso estético caracteriza-se por ser carregado de poeticidade, termo que nessa disciplina é definido de modo bastante preciso: trata-se de uma relação peculiar entre o significante e o significado, chamada de semi-simbolismo, na qual o significante se liga ao significado de forma não apenas arbitrária, mas motivada também.
Complicado? Nem tanto. Um exemplo prático deixará tudo mais claro. Consideremos a palavra "gato". Ela possui um significante, constituído pela sua sonoridade e pelo seu registro gráfico, e um significado, que corresponde à ideia que a sua audição ou visão evoca na mente do indivíduo letrado em português: um pequeno mamífero, felino, geralmente doméstico, etc.
Pois bem, a linguística entende, desde Saussure, que não há nada no significado da palavra "gato" nem no animal em si que determine ou motive a sua representação por meio desses fonemas. Prova disso é o fato do bichano receber nomes diferentes em outras línguas: mace (albanês), kissa (finlandês), neko (japonês), e assim por diante. Daí dizermos que, em uma relação simbólica, típica das línguas naturais, o vínculo entre o significante e o significado é arbitrário, não motivado.
No caso do semi-simbolismo, esse elo não resulta apenas da convenção social. As formas do plano de expressão indicam por si mesmas, sem que seja necessário recorrer ao dicionário, as noções em jogo no conteúdo do texto. Um poeminha famoso ilustra a artimanha:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Notem como, nesse poema do Drummond, a recorrência de determinadas formas sonoras sugere por si mesma, independente do significado lexical das palavras correspondentes, o bloqueio que a pedra no meio do caminho representa para o enunciador. Até mesmo um estrangeiro, sem conhecimento algum da nossa língua, perceberia, pela repetição insistente de uma mesma sequência fônica, que alguém ou algo entrou em looping.
O conceito de semi-simbolismo foi proposto por Jean-Marie Floch para uso na crítica de artes plásticas, campo em que é indispensável no estudo das obras. Alguns exemplos bem didáticos dessa abordagem podem ser encontrados nos livros Semiótica Visual - os percursos do olhar e Análise do Texto Visual - a construção da imagem, ambos escritos por Antonio Vicente Pietroforte.
Vejamos um deles, a capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette, discutida em Análise do Texto Visual.
Capa do disco New Directions, do baterista Jack DeJohnette.
Nessa imagem, o plano de expressão envolve componentes topológicos, eidéticos e cromáticos. Por meio da análise de seus contrastes, Pietroforte explica como o plano de expressão está configurado nessa peça.
"Quanto à forma, que pode ser descrita de acordo com a categoria plástica eidética homogêneo vs. heterogêneo, é possível opor o portão aos músicos de modo que o primeiro tem forma homogênea, definido por uma regularidade de linhas horizontais, e os últimos têm forma heterogênea, com poses e contornos distintos" (p. 28).
"Quanto à cor, no caso articulada pela categoria plástica cromática monocromático vs. colorido, há uma oposição entre o portão monocromático e as diversas cores dos músicos e de seus trajes" (p. 28).
"Por fim, a categoria plástica topológica. articulada e, horizontal vs. vertical organiza, respectivamente, a disposição das linhas do portão e dos músicos" (p. 28).
Para Pietroforte, esses contrastes visuais, que correspondem no plano do conteúdo às figuras portão vs. músicos, sugerem também, por analogia, alguns significados culturalmente relacionados ao jazz: a tensão entre os termos identidade vs. alteridade, categoria semântica ligada nesse estilo musical ao equilíbrio dinâmico entre tema vs. improviso - melhor do que falar, dá pra ouvir como, a partir de uma melodia, acompanhada de harmonia e ritmo definidos, os músicos aprontam seus malabarismos, ou seja, variações individuais de uma estrutura comum (o tema) que dá "cara" à performance:
Notas
Assumi neste texto, que o leitor já entende que o significado das coisas se estabelece por meio de oposições ou contrastes. Para uma explicação rápida dessa ideia, sugiro ler aqui mesmo no blog a primeira parte do postAnálise semiótica em netnografias de marca.
FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l'oleil et l'esprit. Paris-Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2010.
_____________. Análise do texto visual: a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2011.
Segundo artista, em poucos dias, que vejo questionar a cultura da ironia, tão dominante nestes tempos pós-modernos. O primeiro foi o escritor-revelação peruano Jeremías Gamboa. Agora leio no Estadão este depoimento contundente do Iñárritu, diretor de Birdman, barbada para o Oscar deste ano:
"[...] não escrevi este argumento para atender à maior fonte de cultura popular agora, que é a ironia e o cinismo. Vejo isso nos meus adolescentes; tudo o que é sério, tudo o que é primitivo, é absolutamente rejeitado. Tudo tem que ser levado intelectualmente e com comentário sobre isso. Estou cansado disso. Tentei ser verdadeiro e honesto diante da questão. Seriamente engraçado significa ser verdadeiro."
Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
As declarações de Jeremías Gamboa seguem a mesma toada, a começar pelo título do seu romance Contar Tudo, recém lançado no Brasil:
"[...] é um livro sem ironia. Depois de algum tempo escrevendo, me dei conta que não era o tipo de autor com humor ácido ou com uma visão irônica das coisas. Pelo contrário. Acredito ter sido testemunha de uma sobrevalorização da ironia e da presença potente de artistas que não a usam, mas que se aproximam à mais pura sinceridade e fé, como os músicos do Arcade Fire. Nesse sentido, estou próximo de uma ideia do escritor israelense David Grossman, que advoga por uma “ingenuidade adquirida”. Parece que em um tempo tão acossado pela ironia, e, sobretudo, pelo cinismo, podemos fazer do romance um campo de resistência para esse tipo de ingenuidade.[...] Me interessa que a literatura ofereça também luzes dentro do contraste da experiência humana, que tente vislumbrar possibilidades de entendimento ou de relações entre pessoas."
O debate não é exatamente pós-moderno como já demonstrou Octavio Paz. Para quem quiser rastrear as idas e vindas da ironia na arte, desde o século XIX até o ocaso das vanguardas no final dos anos 1960, recomendo fortemente a leitura do seu livro Os Filhos do Barro, um ensaio riquíssimo sobre as origens e a evolução da poesia moderna.
Tanto a arte quanto o branding produzem experiências estéticas notáveis. Esse fato faz com que alguns indivíduos confundam as duas coisas. Há quem chegue a falar da "arte do branding" como se o branding fosse uma atividade artística também. Afinal de contas, por que a belíssima escultura de uma garrafa da vodka Kors não seria "uma verdadeira obra de arte"?
As garrafas da vodka Kors.
Em primeiro lugar, porque ela não tem apenas função estética. Seu vasilhame serve também para conservar o líquido, facilitar o manuseio e o transporte (nem tanto), e, o que mais nos interessa em termos de branding, para diferenciar de modo singular o produto em relação aos seus concorrentes. Obras de arte, ao contrário, existem tão somente para proporcionar satisfação estética - como já dizia Kant, elas têm uma finalidade sem fim.
Em segundo lugar, garrafas de Kors não são expostas em museus e galerias, nem discutidas por críticos, pesquisadores e jornalistas de arte, ou seja, elas não são socialmente reconhecidas como obras de arte. Talvez isto aconteça porque, ao contrário da eau de toilette Belle Haleine, elas nunca tenham pretendido ser.
Eau de toilette Belle Haleine
Você não encontrará a Belle Haleine à venda em loja alguma, nem ninguém nunca a encontrou. A peça é um ready-made de Rrose Sélavy, alter ego de Marcel Duchamp, concebida exclusivamente para exposições artísticas.
Se todos os seus elementos, porém, são típicos de uma belo frasco de perfume, muito mais do que de uma "obra de arte", o que faz desse vaso de eau de toilette um objeto artístico? O seu contexto social e o seu batismo por uma instituição.
Não fosse a Belle Haleine produzida por alguém que é publicamente reconhecido como um artista, exposta em museus e acolhida pela crítica especializada, ela não seria uma obra de arte, por mais arrebatadora que fosse do ponto de vista estético. Donde se conclui que, se branding não é arte, muito da arte se faz com as manhas de branding.
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Três posts para ler mais sobre o assunto aqui mesmo: