8.1.11

O papel dos produtos no branding e nas narrativas de marca

O que é mais importante para o sucesso de uma marca, seus produtos ou as suas histórias? A pergunta representa um falso dilema ou oposição. Para não sermos enganados por ela, precisamos entender o papel ritual dos produtos na sociedade contemporânea (McCRAKEN, 2003) bem como o caráter narrativo do seu consumo. Tentarei explicar esse ponto de vista a partir de uma breve nota etnográfica.

Leia também: Como fazer uma netnografia (etnografia on-line)

O caso do All Star branco nos shows de axé


Outro dia descobri, numa conversa casual, um código cultural da juventude baiana: usar All Star branco em shows de axé. Estávamos num grupo de colegas de trabalho, e uma das minhas interlocutoras comentou que tinha um All Star branco só para usar nessas ocasiões. O resto da turma identificou imediatamente a regra, confirmando que esse era mesmo um padrão.

"Por que não usar um All Star de outro cor, preto, digamos", eu perguntei. "Porque quem usa All Star preto é metaleiro", responderam-me.

Percebem como, para um determinado segmento social da juventude baiana, as diversas cores de All Star estão associadas a experiências distintas, as quais são claramente estruturadas como rituais?

Mas minha experiência etnográfica com aquele grupo de amigos não parou por aí. Perguntei à dona do All Star branco porque ela havia comprado um tênis branco dessa marca? E só para usar em shows, percebem? Infelizmente não pudemos continuar a conversa. Precisávamos trabalhar. Mas eu tenho cá minhas hipóteses sobre essa questão.

Primeiro, o All Star tornou-se um ícone cultural a partir da segunda metade dos anos 1970, quando foi espontâneamente adotado por artistas e fãs do punk rock. O sucesso do estilo musical e dos seus astros permitiu à marca expandir seus limites posteriormente, graças a uma bem sucedida estratégia de reposicionamento: de uma simples e decadente “basqueteira”, o All Star passou a anunciar histórias coerentes com as histórias vividas por seus novos fãs, os roqueiros.

Percebem? O sucesso do All Star teve quase nada a ver com as características funcionais e materiais do produto (na verdade, era considerado uma “basqueteira” antiquada, superada). O All Star tornou-se um ícone cultural por causa do seu uso em trocas simbólicas (BORDIEU, 2009).

Hoje em dia, a sua autoridade mítica no universo contracultural está bem estabelecida, garantido-lhe um papel privilegiado como suporte para a ação ritual em shows musicais que incorporam, de alguma forma, elementos do universo rock - o axé tem se apropriado não apenas de elementos e instrumentos musicais do rock´n roll, mas também do vestuário e da cinésica do rockerman.

Nesta breve vinheta antropológica, resta analisar ainda porque muitos baianos usam All Star branco e não azul ou preto. Eu desconfio que tenha a ver, em primeiro lugar, com este nomezinho: “axé”. Ora, é um termo tomado de empréstimo do candomblé e da umbanda, onde se usa muito branco, não? Fala-se “axé” para saudar pessoas a quem se quer bem, significando aproximadamente “energia positiva”.

Usar uma cor diferente é também uma estratégia de distinção no processo de construção da identidade social dos sujeitos. Ao calçar um All Star branco, essa categoria de jovem baiano pode estar narrando uma história na qual assume um papel contracultural sem o risco de ser confundido com um “metaleiro” ou punk.

Branding é sobre contar histórias


Análise similar à essa pode ser desenvolvida para cada uma das “marcas-ícones” (HOLT, 2005) do nosso tempo. Tais marcas costumam liderar os rankings de brand equity graças ao alto valor de identidade que veiculam - os consumidores topam pagar preços premium por elas, muito acima dos seus custos unitários totais, porque elas se tornaram signos praticamente insubstituíveis para elaborarem discursos sobre quem eles são.

Como marcas-ícones se estabelecem? Como qualquer outra marca: por meio de histórias (ou mitologias, como diria Barthes) - sua especificidade reside apenas no fato de, ao contrário de marcas comuns, veicularem poderosos mitos de identidade, que respondem às grandes contradições culturais de uma sociedade.

Pois bem, é nesta altura do argumento que surge a controvérsia com que abri este ensaio: e quanto aos produtos, ao atendimento e outros aspectos mais tangíveis, eles não contam? Sim, contam. São os sinais materiais do “projeto de sentido da marca” (SEMPRINI, 2006), o qual é elaborado por meio de histórias. Deixem-me explicar melhor.

Os sinais materiais de uma marca, produtos inclusive, só adquirem significado quando são apresentados dentro de uma narrativa. Isso porque, para que os objetos façam sentido para a mente humana, eles precisam ser ordenados numa ordem cronológica e causal - e não só os objetos, como também termos que se referem a realidades intangíveis do tipo amor e ódio, humildade e vaidade, etc.

Criamos histórias o tempo todo, ligando, quase sempre de modo inconsciente, as coisas, as pessoas e os eventos por meio de setas imaginárias. É assim que construímos o mundo da nossa experiência real, o qual se distingue dos “mundos possíveis” de outras narrativas apenas por ser mais complexo e rico, já que compreende todas as interpretações que uma cultura elaborou em torno dos seus artefatos (ECO, 2004).

Na medida em que os significados dos objetos são fixados por meio de histórias compartilhadas, eles passam a desempenhar papéis determinados e fortemente ativos dentro da nossa vida social (GREIMAS, 1990). Notem, por exemplo, como no caso do All Star branco, o tênis manifesta um universo de valores (os objetos identificam certos valores) narrando alguma coisa sobre quem o possui. É exatamente por essa qualidade simbólica, e não por suas características materiais e funcionais, que o All Star é tão valorizado por seus fãs.

De fato, produtos, atendimento, branded apps, web sites, perfis em redes sociais e outros elementos do mix marketing, só contribuem para o branding na medida em que enriquecem o enredo da marca em sua complexa trajetória sociossemiótica.


REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Mitologiais. São Paulo: Difel, 2003.

BORDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

ECO, Umberto. Os Limites da Intepretação. São Paulo: Perspectiva, 2004.

GREIMAS, Algirdas J. Del Sentido - Ensayos Semioticos. Madrid: Credos, 1990.

HOLT, Douglas B. Como as Marcas se Tornam Ícones: os Princípios do Branding Cultural. São Paulo: Cultrix, 2005.

McCRACKEN, Grant. Cultura e Consumo - Novas Abordagens ao Caráter Simbólico dos Bens e Atividades de Consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

SEMPRINI, Andrea. A Marca Pós-Moderna - Poder e Fragilidade da Marca na Sociedade Contemporânea. São Paulo: Estação das Letras Editora, 2006.

5 comentários:

  1. Excelente artigo, Heber, querido! Parabéns ;-)
    Bjs,

    Martha Gabriel

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  2. Muito bom. Coisa boa ler quem sabe fazer dialogar o bom texto com a riqueza de um artigo acadêmico. Muitas vezes, essas duas coisas não acontecem.
    Sabe, Heber, com bem menos profundidade, um dia eu também refleti sobre o dicurso que o meu sapatênis tem comigo. Foi uma doideira: http://tinyurl.com/4qh5eka.
    Abraço, Juliano
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  3. Ótimo artigo!
    Contar histórias não é somente uma tendência para as marcas, e sim, o futuro.

    Abraços,
    Prí

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  4. Heber, adorei este artigo... Peço licença para usa-lo em minha aulas (com referência, claro!!)
    abs,

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  5. Que bom, Rosana, pode usá-lo. Depois me conta como foi a discussão? Enriquece muito. Abs!

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