2.12.17

O artista, o cientista e o evangelista

Héber Sales


"Il poeta e il filosofo", Giorgio de Chirico (1916)


O artista, o cientista e o evangelista. Três intérpretes da condição humana, três diferentes destinos do ato de interpretação na unidade da cultura.

Sobre as dificuldades e conflitos do amor, por exemplo, o cientista quer identificar a realidade desse sentimento, construir uma teoria que o reflita fielmente - ainda que esse fragmento da realidade, para que se torne objeto significante, precise encontrar seu lugar em um sistema cultural qualquer. Ele pode dizer, como fez Mira y López, que o amor "é, por definição, um processo complexo e contraditório que não pode ser situado nem limitado concretamente em um determinado setor conceitual".

Diante de tal complexidade, o evangelista vai sugerir uma regra de conduta moral que proteja a nossa paz de espírito e, com intenção semelhante à de um legislador, a harmonia da comunidade: é bom que o homem não toque em mulher, mas, se for para viver abrasado, é melhor que se case, escreveu o apóstolo Paulo em sua primeira carta aos coríntios.

O artista, por sua vez, argumenta Mikhail Bakhtin em O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma, vai unir e completar intuitivamente o conteúdo que na vida eticamente vivida apresenta-se dilacerado - constante mandamento insatisfeito -, transferindo-o para um novo plano de significado e valor, para uma existência de beleza isolada e acabada, axiologicamente segura de si. Como neste famoso poema de Camões, eu diria.

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

5.3.17

Design thinking para publicitários

(working paper)

Héber Sales


Ouvimos cada vez mais falar de design thinking na publicidade. Para muitos, parece ser uma grande novidade, uma tendência que precisamos seguir. Quem, porém, for estudar o assunto com mais profundidade, vai notar que a publicidade já faz design thinking há muito tempo, e, muitas vezes, de modo muito mais radical. Explico-me.

O design thinking baseia-se na suposição de que, para sermos mais criativos, precisamos dividir o nosso trabalho em duas etapas: 1) geração de ideias; 2) seleção de ideias. O arranjo foi proposto por Edward de Bono. No seu livro Lateral Thinking (2010), ele sugere que, para evitar bloqueios criativos e a fixação nas soluções mais óbvias e convencionais, devemos estimular primeiro o pensamento divergente, o qual explora livremente, sem críticas de terceiros ou auto-críticas, as mais diversas possibilidades de solução. Só depois disso, deve-se passar à análise e à síntese das ideias, escolhendo a que for melhor.

Pois bem, no design thinking, duplica-se essa estrutura criativa básica, aplicando ambos os tipos de pensamento tanto no diagnóstico quanto na solução de problemas. Graficamente, essa abordagem é representada por um duplo diamante (COUNCIL, 2007).

A imagem abaixo resume como o duplo diamante funciona no design e na publicidade. Nos próximos parágrafos, explico os paralelos entre as duas disciplinas.

O duplo diamante no design e na publicidade


Diagnóstico e planejamento


Na fase de diagnóstico, que corresponde ao primeiro diamante, o design thinking recorre ao pensamento divergente para explorar o contexto e as mais diferentes explicações para o problema que a equipe de projeto deve resolver (etapa de imersão). Depois disso, por meio do pensamento convergente, analisa os dados acumulados em busca de padrões que revelam a real natureza do problema que está sendo investigado (etapa de síntese).

A publicidade possui uma abordagem bastante similar, a qual corresponde ao trabalho do setor de planejamento das agências. O que no design thinking é chamado de imersão, no planejamento publicitário chamamos simplesmente de pesquisa - é com base nela que depois, através do pensamento convergente, vamos selecionar alguns insights que, apresentados no briefing, servirão para orientar e inspirar o pessoal de criação.


Soluções criativas


O trabalho da criação, por sua vez, tem o seu próprio diamante, cuja primeira metade corresponde ao esforço de gerar e explorar ideias, buscando referências e "rafeando" (ou rascunhando) sempre, Depois disso, o processo torna-se convergente e envolve o desenvolvimento de conceitos que serão testados e aprimorados antes de se começar a produzir a campanha propriamente dita.

No design thinking, há um processo similar a esse, que se divide respectivamente nas etapas de ideação e de prototipação. É o seu segundo diamante da estrutura do duplo diamante.


Design thinking e publicidade


Quer dizer então que o design thinking joga o mesmo jogo que jogamos na publicidade, só que, como comentou um aluno meu, "com esquema tático e nome bonitinho"?

Curiosamente, essa frase irreverente já nos dá uma pista da diferença entre as duas disciplinas. O design thinking é mais instrumental e sistemático, com uma caixa cheia de ferramentas (FERREIRA e PINHEIRO, 2013). Algumas podem ser bastante úteis na publicidade, outras servem mais para modelar produtos, serviços e negócios.

Na publicidade, há um foco maior na mensagem e na comunicação; no design, a ênfase está na experiência do consumidor (antes, durante e depois da compra e uso do produto ou serviço).

Na publicidade, buscamos surpreender o interlocutor com uma conversa inusitada, interessante e estimulante; no design, a ênfase está na adequação de uma solução às necessidades do usuário.

Na publicidade, podemos começar uma entrevista sem roteiro nenhum ou até fazer uma entrevista invertida, só para não limitar a conversa ao nosso ponto de vista e à nossa agenda, o que poderia criar um viés e limitar as descobertas. No design, geralmente há esquemas e check-lists para tudo.

Enfim, a publicidade é mais "transgressora", irreverente e iconoclasta, eu diria, assim como a frase do meu aluno, que, aliás, já trabalha na área de criação - como vocês podem ver, tem tudo a ver com ele.

A publicidade, a propósito, muitas vezes olha com desconfiança para as abordagens mais estruturadas, típicas do design, pois, para ela, a falta de método é, em si mesma, um bom método para produzir aqueles imprevistos que nos levam às descobertas mais inesperadas e, por isso até, potencialmente mais disruptivas. Nesse aspecto, como discuti num outro ensaio (SALES, 2017), o publicitário age muito mais como um artista do que como um designer.


O duplo diamante da publicidade


Para deixar mais claros todos esses pontos, estamos lapidando, no grupo de estudos que coordeno, o duplo diamante da publicidade. A imagem abaixo mostra os seus principais planos ou dimensões. Explicarei cada uma das suas facetas num próximo ensaio. Por enquanto, segue um breve resumo. Além das referências citadas ao final, uma fonte importante para compreender esta abordagem é o modelo de branding hipercultural que desenvolvo numa pesquisa paralela à esta.

O duplo diamante na publicidade


Todo o processo se inicia com a seguinte pretensão do cliente da agência: ele quer obter uma certa resposta junto a um ou mais públicos determinados.

Ao percorrer o duplo diamante, definimos o que dizer no primeiro diamante e como dizer no segundo.

Na fase de pesquisa, usamos métodos que nos permitem compreender em profundidade as pessoas com quem desejamos conversar, especialmente os conflitos que vivem e como respondem a eles por meio de mitos de identidade. Queremos saber o que sentem e o que pensam a respeito, quais valores às guiam nesses dramas e projetos, como agem nesse processo. Precisamos descobrir também como essas pessoas percebem os vários concorrentes nesse contexto, que tipo de aliados eles são para elas na aventura de suas vidas, como eles se posicionam em relação aos valores que norteiam as suas escolhas.

Na fase de briefing, selecionamos um dos muitos mitos de identidade que animam e orientam as escolhas das pessoas com quem queremos conversar. Qual deles encarna os valores que a marca compartilha com o seu público? Qual tem mais a ver com o posicionamento e a autoridade cultural da marca? Esse é o mito que irá inspirar a história que será contada na campanha.

Na etapa de criação, já no segundo diamante, imaginamos várias histórias alternativas, que podem ser registradas inicialmente na forma de rafes e pitchs. Exploramos também os contextos em que essas histórias farão mais sentido e como elas poderão ser enriquecidas e enfatizadas pelos mais diversos meios, formatos, elementos do mix de marketing (preço, produto e ponto) e de comunicação (relações públicas, eventos, etc). Além do pensamento divergente, outras abordagens criativas são acionadas aqui, entre elas o pensamento homoespacial e a livre associação de ideias. Precisamos bolar uma história que traga um ponto de vista singular sobre o mito de identidade proposto pelo briefing, um ponto de vista que seja relevante para o público e que revele a originalidade, a maestria e a relevância da própria marca, transformando-a desse modo num daqueles autores virtuais favoritos, sobre os quais as pessoas conversam com empolgação.

Finalmente, na etapa de conceituação, os rafes e pitchs gerados na fase anterior são testados, aprimorados e finalizados. Em primeiro lugar, tendo em vista o modo como o público pode receber e interpretar cada uma das histórias concebidas (se a mensagem chama atenção, se é clara, se "prende", se persuade, se alcança a resposta desejada enfim). Além disso, é preciso considerar como a tal impacto pode variar de acordo com as diferentes possibilidades de manifestação (ou realização) das histórias e com a eficiência dos meios considerados.


Referências:


COUNCIL, Design. Eleven lessons: Managing design in eleven global companies-desk research report. Design Council, 2007.

DE BONO, Edward. Lateral thinking: a textbook of creativity. Penguin UK, 2010.

FERREIRA, Luis; PINHEIRO, Tennyson. Design Thinking Brasil: empatia, colaboração e experimentação para pessoas, negócios e sociedade. Elsevier Brasil, 2011.

SALES, R. Héber. Branding hipercultural. 2016.

______________.  Creative hacking: o processo criativo na arte e no branding. Working paper, 2017.

24.2.17

Ligando os pontos na publicidade de um museu

Héber Sales

Guggenheim Bilbao

É quase impossível mudar uma ideia enraizada na mente das pessoas. O truque é: para persuadir, concorde primeiro. Depois mostre o que a sua marca ou serviço tem a ver com o conceito que o consumidor já tem na cabeça.

"Museu é coisa tradicional". É o que pensa muita gente. Você não vai mudar isso. Vai apenas buscar as palavras bacanas associadas ao "tradicional".

Você é um bom planner. Tem ampla cultura geral, é bem informado. Sabe de tudo um pouco.

Sabe que, na moda, novas coleções resgatam cores, cortes, estilos, peças do passado. Seu público também sabe disso. O passado sugere tendências, é fonte de "inspiração", uma palavrinha que algumas pessoas associam a museu também.

Além disso, o "antigo" é, em nossa cultura (e em muitas outras), associado a sabedoria e mistério. Ora, não existem gurus adolescentes, muito menos crianças, não é?

(Mas no filme Matrix, sim, do mesmo jeito que em Dexter há um herói que é um psicopata serial killer. Ah, esses criativos... Eles são mesmo uns danados, ligam os pontos de um jeito diferente).

O guru, o sábio, via de regra, é velho, tão velho que ninguém sabe direito a idade dele. Talvez seja um imortal. Como o mestre Yoda, na saga Star Wars, ou o Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão.

O museu pode ser reposicionado como uma fonte de inspiração? Como um desses gurus imortais? Como um hub ou um radar de tendências? A proposta da última Bienal era esta. É também o que a gente vê na arquitetura de muitos museus hoje em dia, como o Guggenheim Bilbao.

Aliás, em um exercício de pesquisa, alguém associou "museu" à palavra "perspectivas". É por aí que vamos reposicionar a categoria? E se for um museu com o maior acervo, a maior quantidade de exposições? Ele oferece mais perspectivas? É um super radar de tendências?

Notem, o planner está conseguindo ligar pontos muito diferentes porque é um curioso de plantão, um observador atento e participante da vida cultural, sempre bem informado sobre tudo - não vive só a publicidade, vive muito a rua, o mundo, várias comunidades, transita por inúmeras "tribos".

Como ele poderia ser mais sistemático nesse estudo? Que métodos, técnicas e ferramentas usaria?

Aqui mesmo no blog, já expliquei como a etnografia pode ajudar no post como fazer uma netnografia (ou etnografia online). Você pode ver ainda como funciona a análise semiótica nesse tipo de pesquisa.

E aqui está um livro de monitoramento e análise de mídias sociais que apresenta a netnografia e alguns outros métodos de pesquisa online (é free).

6.2.17

Creative hacking: o processo criativo na arte e no branding

Héber Sales


"Os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam."
Pablo Picasso


Este ensaio deve muito ao crítico Will Gompertz, que, no livro Pense como um artista (2015), explica o processo criativo na arte. Para os veteranos, a obra não traz tanta novidade. Porém, sua leitura vale à pena por esmiuçar o método de vários artistas e obras famosas. Além disso, é uma boa oportunidade para organizar as ideias sobre o tema. Já para os calouros, recomendo: é uma obra para ter na cabeceira.

A estrutura do que apresento a seguir baseia-se em grande parte no processo sugerido por Gompertz. Há, no entanto, outras influências, além da minha própria experiência: aquelas que reuni em meu programa de pesquisa sobre arte, cultura e publicidade, entre as quais destaco Bakhtin (2014), Greimas (2004), Floch (1985), Schaeffer (2004) e Volli (2003).

A propósito desse programa, sugiro, como um pré-requisito ao estudo deste texto, a leitura do ensaio Publicidade é arte? Vai ajudar a esclarecer as semelhanças e diferenças entre esses dois ofícios que aqui se combinam mais uma vez.

O que isso tudo tem a ver com hacking? Como veremos mais adiante, no capítulo 3, quando se trata de criatividade, o roubo é a alma do negócio.

Para continuar lendo, clique aqui.



"Coca-Cola 3 bottles" (1962), Andy Warhol