7.11.16

Filosofia da arte à luz da semiótica

O que é arte? Os debates a respeito são infindáveis e, até hoje, muito marcados por divergências. Qualquer livro de introdução ao assunto procura enfatizá-las muito bem. O que nem sempre fica claro nesse tipo de obra, entretanto, são certos consensos implícitos entre as várias teorias. Neste working paper, discuto alguns deles por meio da releitura semiótica de um desses trabalhos: o livro A Arte, de Rogério Duarte (2012). Continue lendo

Orange car crash fourteen times (1963), Andy Warhol

14.10.16

Comece com um rascunho, continue com ele

A pesquisa como um protótipo



"Não comece com uma folha em branco. Comece com um rascunho." - John Hegarty





Assim como uma semente, cada pesquisa nasce como um protótipo: ela é um todo orgânico, que replica em miniatura o artigo ou livro que poderá ser um dia.

Às vezes isso acontece de modo mais claro e acabado. Outras vezes, de um jeito mais vago. Mas sempre acontece. Se você não perceber logo a existência desse mundo conceitual e não tratá-lo como algo que, apesar de ínfimo, é completo, ele se desintegrará e desaparecerá irremediavelmente nas profundezas do inominável.

Falemos de modo prático, um passo de cada vez.


O primeiro protótipo


Sempre que fazemos uma pergunta, junto com ela já aparece uma provável resposta. No senso comum, a confusão entre esses termos é tão grande que a dúvida costuma mergulhar numa daquelas teorias populares e sumir.

Os ditados são um bom exemplo disso. A frase "a beleza está nos olhos de quem vê" é uma pequena tese que, no dia a dia, é repetida à exaustão sem que, na maioria da vezes, alguém questione se não haveria mesmo um senso universal de beleza inerente ao ser humano, o qual asseguraria a admiração dos mais variados povos de diferentes épocas diante de cenas como as do monte Fuji com seu topo coberto de neve, ou mesmo, caso admitíssemos a relatividade da beleza, nos perguntássemos o que faz com que as pessoas tenham gostos tão variados entre si.

O senso comum geralmente não pára para pensar nessas coisas. Algumas mentes mais inquietas e céticas, sim, entre elas a do cientista e a do filósofo - a do artista e a do poeta também.

O primeiro passo de todo pesquisador é pois extrair a dúvida de dentro de afirmações do tipo. Como se faz isso? Com as seguintes perguntas.

Onde está o ponto cego de uma teoria qualquer, seja ela popular, científica ou filosófica, que dá uma resposta duvidosa sobre algum assunto que lhe interessa? O que ela não vê? O que pretende ver mas ainda não enxerga direito? Ainda mais delicado: o que ela deixa de fora do seu campo de visão simplesmente porque a confunde e mina a sua autoridade?

Pronto, é desse jeito que construímos um primeiro protótipo feito de duas peças: uma teoria, que oferece uma resposta (uma hipótese) para a questão que nos intriga, e pelo menos uma pergunta que a desafia. A partir daí, colocamos o nosso protótipo para rodar, sujeitando-o a atritos, torções, pressão e calor. Assim, veremos até onde ele pode chegar sem maiores danos ou falhas.


Um exemplo prático


Na verdade, não se trata de um protótipo feito de duas peças, mas de dois conjuntos de peças. Tanto a teoria quanto a questão de pesquisa são constituídas, cada uma delas, por uma série de elementos articulados entre si. Eles precisam ser reconhecidos, polidos, ajustados e lubrificados para a máquina funcionar direito. Recorrer a quem entende do assunto ajuda muito nessa hora.

Eis aqui um exemplo prático: o primeiro protótipo de uma pesquisa que venho tocando sobre arte e publicidade na sociedade contemporânea. Notem como nessa primeira versão uma teoria do cineasta Jean-Luc Godard é colocada em julgamento logo de cara, quando começo a trabalhar o seu primeiro elemento, o conceito de cultura. Nessa tarefa, contei com a ajuda do antropólogo Clifford Geertz, com que eu já tinha um bom entrosamento desde os tempos do meu mestrado.

Na sequência do texto, outros elementos ganham forma do mesmo modo. Em alguns casos, eles são tão complexos que vão para uma oficina só deles. É o que ocorre quando remeto o leitor a um outro ensaio meu por meio de um link.

Um desses casos é o texto sobre o divórcio do artista com a cultura. Na verdade, ele parece uma peça, mas é o próprio protótipo dando uma das suas primeiras voltinhas. Vejam como nele as outras peças também aparecem e rodam, especialmente as três que estão na parte dianteira desta frase que se move e resume o projeto: subjetividade-cultura-e-arte-na-publicidade-contemporânea.

A voltinha, no caso, é um passeio por um livro do filósofo russo Mikhail Bakhtin, terreno em que a primeira versão da minha pesquisa, a qual, conforme descrevo no texto sobre o mal-estar da cultura e o consolo da arte, deve muito a uma ajudinha de Freud, revela algumas faltas e fragilidades.


O tempo não para


Não é nada que me desespere, muito pelo contrário. Pois é assim mesmo que a brincadeira funciona - é a graça da coisa. Depois de cada saída, o projeto de pesquisa volta para a garagem, onde passa por consertos e reformas. Em algum momento, um novo protótipo, maior, mais completo e bem acabado, é montado e se inicia uma outra bateria de testes, que podem ser por outros livros ou por dados empíricos coletados sistematicamente.

Um dia, de protótipo, ele pode virar um modelo comercial e comparecer a um congresso, uma revista ou uma prateleira de livraria, sem que, no entanto, esteja concluído para sempre. Você mesmo pode revisá-lo nas próximas edições, ou algum leitor seu pode desmontá-lo e refazê-lo de um jeito um pouco diferente, desenvolvendo dessa forma o seu próprio artefato.

É como dizia Cazuza, "o tempo não para".

12.10.16

O divórcio do artista com a cultura

Uma releitura de Freud à luz de Bakhtin


Héber Sales

No campo das ciências sociais, dentre as críticas mais completas à psicanálise, O Freudismo, livro do filósofo Mikhail Bakhtin publicado em 1927, é um dos primeiros, mais diretos e, descontando-se o que há nele de datado, mais consistentes ataques já feitos, tornando-se, portanto, uma referência incontornável no debate sobre o velho tema psicanalítico do mal-estar do sujeito perante a cultura, questão que, conforme discuti em um ensaio anterior, faz parte da minha pesquisa sobre subjetividade, cultura e arte na publicidade contemporânea.

Para compreender o que será discutido agora, é necessário entender também o que já escrevi sobre a teoria freudiana, pois aqui veremos como Bakhtin reconstrói inteiramente os conflitos pessoais do sujeito da psicanálise em termos de conflitos socioeconômicos e culturais.

Para o filósofo russo, a luta entre o consciente e o inconsciente não passa, na verdade, de uma projeção na alma individual da luta entre duas camadas da "ideologia do cotidiano": a "consciência oficial" e a "consciência não-oficial".

Se considerarmos que a noção de ideologia do cotidiano nesse livro de Bakhtin equivale aproximadamente ao conceito de cultura que venho usando na minha pesquisa, podemos concluir que, contra a cultura, não se opõe um sujeito qualquer, mas uma parte dela mesma: a "consciência não -oficial" de um sujeito culturalmente constituído (cultura e sujeito seriam apenas duas manifestações de uma mesmo processo de formação ideológica).

Como pôde Bakhtin dar tal passo a partir de sua crítica ao freudismo? Na verdade, não foi um, mas vários passos. Revisemos o percurso.


O caráter ideológico do psiquismo e do inconsciente


Os elementos da vida psíquica, que, em Freud, recebem uma nova nomenclatura - inconsciente, consciente, Eu, Isso, Supereu, etc. -, não passam, segundo Bakhtin, de velhos conhecidos da psicologia subjetiva: a vontade (desejos, aspirações), o sentimento (emoções, afetos) e o conhecimento (sensações, representações, pensamentos).

Nesse grande ramo da psicologia há um problema porém: aquilo que ela identifica como os elementos da vida psíquica "só existem para a consciência", já que é por meio da introspecção e da fala que se teria acesso a eles. Como o próprio Freud reconhece, tal método é incapaz de nos levar além da "consciência oficial".

Ë preciso lembrar que a introspecção é tendenciosa ("não pode livrar-se das avaliações)" e, ao mesmo tempo, "racionaliza demasiadamente a vida psíquica e, por isso, os seus testemunhos exigem uma elaboração substancial". Como resultado, o que a psicanálise reconhece como inconsciente não passa de uma "analogia do consciente" - ela assume que, nesse território obscuro e intocado da psique, há os mesmos elementos que encontramos na consciência. Prova disso é que, na teoria freudiana, o inconsciente atua de modo "sumamente 'consciente' e ideológico", produzindo "entre as experiências emocionais uma seleção puramente lógica, ética e estética". De fato, acusa Bakhtin, "o que há menos neles é o mecânico" pressuposto por Freud (BAKHTIN, 2014, p. 69).


Como investigar o inconsciente


Além de paradoxal, cabe perguntar se esse método é cientificamente legítima. A resposta de Bakhtin é categórica. Para ele, é inadmissível passar de um nível ao outro da investigação psíquica mantendo a mesma abordagem, já que, "abandonada a consciência, [não faz] mais nenhum sentido conservar sentimentos, representações e desejos" (BAKHTIN, 2014, p. 69). Esse dados subjetivos, por mais que sejam reinterpretados pela psicanálise, "[permanecem] no terreno da experiência interior", sendo, portanto, a expressão de uma consciência e não de um mecanismo autônomo como o inconsciente, que agiria à revelia do sujeito, de modo totalmente ignorado por este.

Caso se queira conhecer as forças objetivas reais que geram os comportamentos involuntários determinados inconscientemente, deve-se abandonar esses dados, argumenta Bakhtin, e desenvolver uma análise objetiva dos atos apoiada em "componentes materiais elementares do comportamento" (BAKHTIN, 2014, p. 70).

Acontece que um desses componentes é precisamente o enunciado verbal. Foi com base nele que Freud tentou penetrar nas camadas mais profundas do psiquismo e revelar a sua dinâmica. Fez isso, porém, permanecendo nos limites do que o paciente tinha a dizer, sem considerar que toda fala tem "raízes fisiológicas e sociológicas" (BAKHTIN, 2014, p. 77).

É a partir dessa constatação que Bakhtin tenta ir além de Freud, reelaborando o que a psicanálise trouxe de novo para a psicologia subjetiva - "a luta, o caos, e o infortúnio da nossa vida psíquica" (BAKHTIN, 2014, p. 75) - em termos mais objetivos, de caráter sociológicos.


A projeção de uma dinâmica social para a alma individual


Inicialmente, o filósofo russo questiona se podemos reconhecer como expressão do psiquismo individual de um sujeito aquelas enunciações que ocorrem durante uma sessão de terapia, dominada como ela é por inter-relações muito complexas do paciente com seu analista - enquanto o primeiro procura esconder algumas experiências emocionais e impor o seu ponto de vista sobre o seu sofrimento, o segundo tenta preservar a sua autoridade e busca obter revelações que confirmem as suas hipóteses, em um duelo pelo qual perpassam outros elementos como diferenças de campo, de idade, de posição social e de profissão.

A resposta de Bakhtin à essa questão é categórica: "nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu". Ela já encontra prontas, em seu aspecto fundamental, aquelas formas linguísticas que emprega, as quais são produzidas por meio de "um longo convívio social de um determinado grupo de linguagem". O que a caracteriza precisamente - "a escolha de certas palavras, certa teoria da frase, determinada entonação [...] - é a expressão da relação recíproca entre os falantes e todo o complexo ambiente social em que se desenvolve a conversa" (BAKHTIN, 2014, p. 79).

Para tornar ainda mais claro esse ponto, o filósofo emprega uma metáfora: "a palavra é uma espécie de "cenário" daquele convívio mais íntimo em cujo processo ela nasceu", o qual, por sua vez, "é um momento de um convívio mais amplo do grupo social ao qual pertence o falante". Para entender esse cenário que a palavra é, faz-se necessário reconstruir "aquelas complexas inter-relações sociais das quais uma dada enunciação é a interpretação ideológica" (BAKHTIN, 2014, p. 79-80).

E tudo o que foi dito acima aplica-se também ao "discurso interior", pois ele dirige-se ao ouvinte eventual de uma comunidade linguística, tornando-se também desta forma a manifestação do convívio social.

Assim devem ser vistas as enunciações nas quais se baseia a teoria freudiana, ou seja, como cenários de um pequeno acontecimento social: a sessão de psicanálise. Elas refletem não a luta do inconsciente contra a consciência individual do paciente mas, acima de tudo, a resistência ao terapeuta, ao ouvinte em geral - àquele outro enfim, que lhe interpela com suas exigências e concepções.

Desse ponto de vista, o que seriam então todas aquelas vivências psíquicas que os pacientes relatam quando estão estendidos sobre um divã e falam dos seus desejos, sentimentos, pensamentos, prazeres e desprazeres? Apenas uma projeção através da qual se investe na alma individual um conjunto de inter-relações sociais. O fenômeno é bem conhecido na psicologia, que constata repetidamente que "as experiências emocionais, na maioria dos casos, apenas duplicam o mundo dos objetos externos e das relações sociais". Com efeito, sempre que a ciência tenta fixar um limite exato entre o sujeito e o objeto, termina por concluir paradoxalmente que esse limite não existe, que tudo depende do ponto de vista. "O mesmo objeto, dependendo da relação, do contexto que o interpretamos, vem a ser ora uma vivência psíquica (minha sensação, representação) ora um corpo físico ou um fenômeno social" (BAKHTIN, 2014, p. 80).


Fatores objetivos da dinâmica psíquica


Por meio de um outro mecanismo de projeção podemos explicar ainda, se seguirmos o raciocínio de Bakhtin, todos aqueles complexos que teriam sido recalcados no inconsciente durante a infância do sujeito. O que guardamos lá não é de modo algum uma revelação do passado, mas de sua interpretação do ponto de vista do presente. "No passado vemos apenas o que é essencial para o presente [...]. Nós transferimos do presente para o passado pré-consciente da criança, antes de tudo, o colorido ideológico valoral característico apenas do presente"(BAKHTIN, 2014, p. 81).

Uma vez que retiramos deles todo esse revestimento semântico e valorativo, o que resta dos fatos da vida infantil - a excitabilidade precoce das zonas erógenas, a dificuldade em largar o corpo da mãe por um instante sequer, etc - não nos autoriza a concluir que, por exemplo, o Complexo de Édipo e todos os seus motivos - a "pulsão sexual pela mãe", o "pai-rival", a "hostilidade ao pai", o "desejo de sua morte" - tenham existência objetiva. Passar daqueles fatos para esta teoria é saltar de um plano de mensuração para outro. Acolá, flagramos forças materiais; aqui, uma luta de motivos criados por uma consciência forjada na e pela linguagem, uma "consciência que reflete a dialética da história em proporções bem maiores que a dialética da natureza" (BAKHTIN, 2014, p. 82-84).

O que nos resta então estudar se nos propusermos a trabalhar nos termos e condições de uma psicologia objetiva? De um lado, os fatores fisiológicos, que afinal são insuficientes para explicar os atos humanos - especialmente aqueles conflitos de comportamento verbalizados com os quais Freud trabalhava - se a eles não juntamos, de outro lado, a análise da palavra. Isso porque, como já vimos, o conteúdo do psiquismo (entre eles os motivos do inconsciente) é uma expressão ideológica da consciência, para a qual as coisas só se tornam "reais" por meio do discurso, seja ele interior ou exterior. A palavra então, "no sentido sociológico mais amplo e concreto, é o meio objetivo em que nos é dado o conteúdo do psiquismo" (BAKHTIN, 2014, p. 84).


O conteúdo da consciência como ideologia


Assim como Freud, Bakhtin desconfia da consciência do indivíduo como fiel testemunha dos fatores que o levam a se comportar desta ou daquela forma. Ao contrário de Freud, porém, o russo vai além, e descarta de igual modo os motivos do inconsciente como explicação dos atos humanos, já que, na psicanálise, o inconsciente em nada distingue-se da consciência.

"Os motivos do inconsciente que se revelam na sessões de psicanálise [...] são reações verbalizadas do paciente tanto quanto todos os demais motivos da consciência", diferindo destas destas, por assim dizer, não pela espécie de sua existência, mas tão somente pelo seu conteúdo, isto é, ideologicamente" (BAKHTIN, 2014, p. 85).

A partir daí, Bakhtin começa então a reconhecer, além da consciência "oficial", uma consciência não-oficial, à qual corresponde o inconsciente freudiano. Esses dois tipos de consciência não são essencialmente diferentes entre si. "[...] entre o conteúdo do psiquismo individual e a ideologia enformada não há uma fronteira em termos de princípio", pois "uma vivência individual conscientizada já é ideológica" e, entre ela e a realização cultural mais complexa e bem acabada, há uma corrente contínua de elos de "uma única cadeia de criação ideológica" (BAKHTIN, 2014, p. 87).

Como pode, porém, o conteúdo mais vago da consciência já ser ideológico? Por meio da palavra, resume Bakhtin. Ocorre que tanto o pensamento quanto o sentimento mais vago só se tornam suficiente claros e, por consequência, existentes para o sujeito quando eles percorrem até o fim o longo e tortuoso caminho que leva do conteúdo do psiquismo individual até o conteúdo da cultura e, mais especificamente, da palavra, essa "refração sutil e confusa das leis socioeconômicas" (BAKHTIN, 2014, p. 88).

O argumento fica mais claro se considerarmos que a autoconsciência envolve a colocação de si mesmo sob o olhar de um outro representante do seu grupo social, pois "toda motivação do comportamento de um indivíduo [...] é a colocação de si mesmo sob determinada norma social, é [...] a socialização de si mesmo e do seu ato". Eis o modo como então a consciência de si acaba refletindo e especificando "a consciência de classe em todos os seus momentos essenciais, basilares. Aí estão as raízes objetivas até mesmo das reações verbalizadas mais pessoalmente íntimas" (BAKHTIN, 2014, p. 86-87).

Do discurso interior até os grandes sistemas ideológicos estáveis e enformados das ciências, das artes, da religião, do direito, etc., há um processo incessante de conjugação e cristalização do elemento ideológico instável, "que através das ondas vastas do discurso interior e exterior banham cada ato nosso e cada recepção nossa" (BAKHTIN, 2014, p. 88). Por outro lado, a ideologia enformada, "oficial", exerce uma poderosa influência reversa em todas as nossas enunciações.


A natureza ideológica e social dos conflitos psíquicos


À esse discurso interior e exterior que penetra integralmente o comportamento humano, Bakhtin dá o nome de ideologia do cotidiano. Ela costuma se relacionar de modo aparentemente amigável e cooperativo com a ideologia oficial, "enformada". Eventualmente, porém, pode se dar um conflito entre ambas.

Para entender como essa luta pode acontecer e atingir o sujeito, é preciso compreender primeiro a natureza e a composição da ideologia do cotidiano.

Quanto à sua natureza, ela "é mais sensível, compreensiva, nervosa e móvel que a ideologia oficial". Por isso, em seu cerne, acumulam-se aquelas contradições que, após atingirem certo limite, acabam explodindo o esquema ideológico dominante de uma classe.

Isso não quer dizer que ela seja menos ligada à base econômica e social do que as tais superestruturas ideológicas. Não, de modo algum. Como já vimos, ela faz parte do mesmo plano, da mesmas cadeia de criação cultural que os grandes e sólidos sistemas ideológicos.

Algumas camadas mais superficiais da ideologia do cotidiano, às quais corresponde a consciência oficial censurada em Freud, exprimem os momentos mais estáveis e dominantes da consciência de classe. Como estão mais próximas da ideologia enformada, elas permitem que o discurso interior transforme-se mais livremente em discurso exterior.

Outros estratos, porém, que equivalem ao inconsciente em Freud, podem ser agora reconhecidos como consciência não-oficial, Eles estão mais distantes da ideologia dominante e acumulam "motivos internos" que sugerem, de modo precoce, a desintegração, senão de toda uma classe ou sociedade, pelo menos de alguns dos seus grupos. Dessas camadas, dificilmente emerge, a princípio, o discurso interior, pois ele teme se tornar um discurso exterior.

Em uma comunidade sadia ou em um "indivíduo social-sadio", "a ideologia do cotidiano, fundada na base econômico-social, é integral e forte. Não há nenhuma divergência entre a consciência oficial e a não-oficial" (BAKHTIN, 2014, p. 89).

Não é isso, todavia, o que ocorre ao paciente da psicanálise. Ele é vítima de um conflito, um conflito que, para Bakhtin, é típico de um certo momento da vida pequeno-burguesa européia, e não de uma luta universal no seio dos seres humanos. "A 'censura' freudiana exprime com muita precisão o ponto de vista da ideologia do cotidiano dessa classe, razão porque surge uma impressão cômica quando os psicanalistas a transferem para o psiquismo de um grego antigo ou de um camponês medieval" (BAKHTIN, 2014, p. 89-90).

As enunciações desses pacientes não revelam afinal, como queria Freud, "conflitos psíquicos", mas lutas ideológicas. De um lado, a consciência oficial e a ideologia dominante; do outro, a consciência não-oficial, essa camada da ideologia do cotidiano em que se acumulam motivos internos divergentes em relação aos habituais motivos ideológicos que podem ser contrários à existência e ao progresso socioeconômico de um indivíduo e do seu grupo.


A origem da ideologia revolucionária


De um modo geral, os motivos da consciência não-oficial tendem a perecer, uma vez que, devido ao profundo fosso que os separam da consciência oficial, eles não conseguem passar do discurso interior ao discurso exterior para aí então ganharem forma, clareza e força. Obstruídos, esses motivos logo se enfraquecem, perdem suas feições verbais e, assim, desaparecem da realidade humana.

Ocorre que, eventualmente, alguns desse motivos alternativos ao sistema ideológico dominante podem se exteriorizar de modo cada vez mais forte na medida em que servem de esteio para a existência econômica de todo um grupo social. "É assim que se cria a ideologia revolucionária em todos os campos da cultura", conclui Bakhtin (BAKHTIN, 2014, p. 90).


O artista contra a cultura


Dessa discussão, cabe destacar aqui para a pesquisa que venho discutindo com vocês, as posições que o sujeito e o artista podem ocupar diante da cultura em que vive.

Ele pode ser um indivíduo social-sadio, para quem não há nenhuma oposição entre consciência oficial e consciência não-oficial.

No outro extremo, ele pode poder se tornar um desclassificado, ou seja, alguém que acumular motivos ideológicos internos idiossincráticos, para os quais não encontra eco em nenhuma parte do seu grupo social.

Eventualmente, porém, alguns desses motivos da consciência não-oficial divergente tornam-se sustentáculos para a existência material de um grupo ou comunidade. Neste caso. estamos diante do indivíduo inconformista por assim dizer, que se coloca, junto com seus pares, contra a ideologia oficial de sua classe.

Chama a atenção no caso dos artistas modernos e contemporâneos que eles tenham sido valorizados pelas classes dominantes justamente por seu inconformismo cultural, ideológico. Aparentemente, tais classes organizaram dentro do seu espaço social um lugar privilegiado onde o discurso interno da consciência não-oficial sofre menos "censura" e pode se converter livremente em discurso externo socialmente aceito e valorizado pela ideologia oficial, "enformada".

Voltarei ao assunto nos próximos ensaios, abordando inclusive uma característica peculiar do discurso desse indivíduo inconformista em particular, o artista: a sua natureza estética. Notem que, como defende Bakhtin, a ideologia do cotidiano é mais "sensível" e "nervosa" do que a ideologia oficial. Em suas camadas mais clandestinas, estão aquelas vagas percepções que buscam as palavras e os outros signos com que podem se tornar existentes para nossa consciência (reais enfim). É pois nessa dimensão que o artista trabalha, convertendo habilmente, por meio de sua extrema sensibilidade semiótica, estímulos sensíveis em objetos sensoriais significativos. Eis uma hipótese a discutir nas cenas dos próximos capítulos.

America (2016), instalação de Maurizio Cattelan no Guggenheim Museum


Leia também: O mal-estar da cultura e o consolo da arte


Referência


BAKHTIN, Mikhail Mikhaĭlovich. O freudismo: um espaço crítico. Perspectiva, 2014.

8.10.16

O mal-estar da cultura e o consolo da arte


Héber Sales

O conflito entre o sujeito e a cultura ao qual me referi no post sobre arte e publicidade na sociedade contemporânea é um tema típico de Freud. Para entender melhor essa luta e como ela acontece no campo da arte, é preciso começar pela definição psicanalítica do Eu.

O Eu na psicanálise


Como esclarece J.-D. Nasio, o Eu da psicanálise não equivale à "consciência de si" (p. 74), já que nele, como provam as resistências não intencionais do paciente ao processo da terapia, a parte consciente é reduzida.

A pessoa que se reconhece como indivíduo sofredor diante do analista não é o Eu, não é o sujeito freudiano ao qual nos referimos aqui (esse sujeito que se angustia diante da realidade exterior): o Eu é "uma instância do aparelho psíquico" (NASIO, 1999, p. 77). Seus principais traços são os seguintes.

  1. Está situado entre dois mundos que lhe são essencialmente estranhos: o mundo interior, o Isso, e o mundo de fora, da realidade exterior. 
  2. Funciona como um radar que percebe todas as excitações, sejam elas provenientes de dentro ou de fora. 
  3. Também atua integrando e adaptando a vida pulsional interna às exigências da realidade externa. 
  4. Ele nasce do mundo interior, desprendendo-se do Isso e se desenvolve por identificações sucessivas com os diversos objetos pulsionais. 
  5. Define-se como uma projeção mental da superfície do nosso corpo.
Antes de prosseguirmos, algumas palavrinhas sobre o conceito de pulsão.

Experimentamos continuamente em nosso mundo interno uma série de excitações. Tanto a visão de uma pessoa eufórica, que aparece em nosso mundo externo, como a dor de uma gastrite geram marcas ou imagens internas, situadas no pólo sensitivo do aparelho psíquico.

Essas marcas são chamadas de representantes das pulsões e, segundo o esquema neurológico do arco reflexo, é da natureza do nosso psiquismo procurar descarregar a excitação provocada por elas. Nisso consiste a vida pulsional interna mencionada acima.

E o que seriam os tais objetos pulsionais com os quais o Eu se identifica ao longo do seu desenvolvimento? São imagens de uma ação que poderia aliviar a tensão provocada pelos representantes das pulsões.

Notem, imagens, representantes psíquicos da ação, e não a ação em si, concreta, que permitiria a descarga total da energia gerada, já que nosso psiquismo, ao contrário do sistema nervoso, não pode resolver a excitação por meio de uma resposta motora (um leve tremor diante da picada de uma agulha, por exemplo, no caso do sistema nervoso).

Esse é um dos motivos, aliás, por que vivemos sob uma tensão constante ou, como diria Freud, em um estado permanente de desprazer. "Na porta de entrada, o afluxo das excitações é constante e excessivo; na saída, há apenas um simulacro de resposta, uma resposta virtual que implica uma descarga parcial" (NASIO, 1999, p. 21).

Um outro motivo é o chamado recalcamento, uma barreira psíquica que bloqueia a passagem dos representantes inconscientes para o nível do consciente - mais precisamente aquele grupo de representantes mais carregados de energia, que estão próximos do pólo sensitivo e buscam uma descarga rápida sem maiores considerações pelas exigências e restrições da realidade exterior, aos quais se opõem um outro grupo de representantes presentes na consciência e que buscam uma descarga lenta e controlada da tensão, de acordo com as possibilidades e limites que o mundo externo oferece (o primeiro grupo é chamado de Princípio de prazer-desprazer e o segundo, de Princípio da realidade).

O Eu, como já foi dito acima, é aquela instância do aparelho psíquico que tenta integrar esses dois princípios, procurando adaptar a vida pulsional interna à realidade do mundo exterior.

As instâncias do psiquismo


Pois bem, um dos recursos adaptativos do Eu é precisamente o recalcamento, que, como provam as resistências não intencionais do paciente durante a terapia, é um mecanismo inconsciente. Por isso não se pode igualar o Eu à consciência.

De fato, para Freud, o inconsciente é a base de toda a vida psíquica, uma qualidade presente em cada uma das instâncias do aparelho psíquico: o Eu, o Isso e o Supereu.

Dentre tais instâncias, o Isso é a mais associada ao inconsciente, apesar de, ao contrário deste, ter a capacidade de perceber no interior de si mesmo as variações da tensão pulsional.

O Isso caracteriza-se por ser estranho ao Eu - é impessoal e heterogêneo - e, ao mesmo tempo, sua coisa mais íntima. Nele encontram-se tanto as representações inatas, próprias da espécie humana, quanto as representações inconscientes de coisas, muito carregadas da energia. É desse grande reservatório de energia que o Eu e o Supereu se alimentam.

O mal-estar da cultura


Chegamos assim àquela parte do psiquismo que nos remete à cultura de modo angustiante: o Supereu, um censor interno que, por delegação das instâncias sociais, exige do Eu conformidade para com as exigências éticas do homem, fazendo emergir o sentimento de culpa que inibe pensamentos e comportamentos reprováveis pela comunidade (FREUD, 2011).

Ao contrário do que essa primeira definição pode sugerir, não devemos encarar o Supereu como algo totalmente estranho e separado do Eu. Não, ele é uma gradação do Eu, um instrumento de medida que o Eu usa para observar a si mesmo, formado a partir da identificação com a instância parental: a fim de receber amor e afeição, a criança introjeta os valores dos pais e da sociedade.

Isso quer dizer que o Supereu da criança é constituído pelo Supereu dos pais. A transmissão de valores e tradições é feita então por meio dos Supereus de várias gerações, uma após a outra, tornando essa instância o próprio veículo da cultura.

A propósito, abramos um parêntese: Freud costumava censurar as concepções materialistas da história por ignorarem essa função do Supereu e colocarem em seu lugar uma teoria que defende a determinação da cultura pelas forças socioeconômicas. Fecha parênteses: retomo esse debate em um outro ensaio, onde discuto as críticas de Bakhtin (2014) ao freudismo.

O que importa reter agora é que o Eu, em seu esforço para conciliar as demandas do Isso com os limites e condições da realidade exterior, desdobra-se em um Supereu que o ajuda a censurar e regular o fluxo da energia dos representantes de pulsões rumo à sua descarga total, a qual, como já vimos, destruiria o próprio Eu.

O consolo da arte


Entre os movimentos de adaptação do Eu, cabe destacar ainda, por sua estreita ligação com a arte, a publicidade e outras realizações culturais, o mecanismo da sublimação.

Aqui é preciso retroceder um pouco para explicar que, para Freud, o sentido oculto de nossos atos é sempre sexual. Em sua origem, encontram-se representantes pulsionais cujo conteúdo representativo corresponde àquelas regiões muito sensíveis e excitáveis do corpo, as zonas erógenas. Como seu destino, um objetivo ideal e inatingível,:"o prazer perfeito de uma ação perfeita, de uma união perfeita entre os dois sexos, cuja imagem mítica e universal seria o incesto" (NASIO, 1999, p. 46).

Diante da impossibilidade desse ato, o Eu recalca, se auto-censura por meio do Supereu, fantasia e sublima. O produto final de todo esse esforço são os atos cotidianos e visíveis das pessoas, reconhecidos pela psicanálise como atos substitutivos do irreal ato incestuoso.

A sublimação, em particular, desvia o trajeto da pulsão sexual, mudando o seu alvo: o objeto sexual visado inicialmente é substituído por outro, de valor social. É nesse sentido que a Freud propôs que as produções artísticas e culturais são "expressões sociais das pulsões sexuais desviadas de seu objetivo virtual" (NASIO, 1999, p. 55).

Qual seria, no entanto, a natureza específica dessa forma de sublimação, a arte? Uma pista para responder à questão está em uma característica muito peculiar do Supereu: o pensamento dualista (vida ou morte, bem ou mal, indivíduo ou sociedade, sem meio termo).

Ora, como discuti em um ensaio anterior, é precisamente contra essa forma de ver as coisas que a arte se insurge. Por isso, podemos entendê-la também como uma manobra do Eu para burlar a censura e os reducionismos do Supereu e se religar ao Isso, essa força desconhecida que, como sugeriu Groddeck (2001), é o grande mistério do mundo: uma força indivisível, atemporal e heterogênea que dirige o que fazemos e o que nos advém.


No limiar da liberdade (1930), René Magritte


Leia também: O divórcio do artista com a cultura


Referências


BAKHTIN, Mikhail Mikhaĭlovich. O freudismo: um espaço crítico. Perspectiva, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Editora Companhia das Letras, 2011.

GRODDECK, Georg. Escritos psicanalíticos sobre literatura e arte. Perspectiva, 2001.

NASIO, J.-D. O prazer de ler Freud. Zahar, 1999.

1.10.16

A vida social na era do Facebook

Topei esses dias com três ótimos textos sobre a pobreza da nossa vida social no Facebook. São leituras de riscos e ameaças, que, ao final desta nota, tento relativizar com a alegria de uma experiência antropológica.



O primeiro desses textos é leve e irônico - você vai rir um bocado: um post da Mariana Miranda, uma das pessoas mais criativas com quem já trabalhei: A fórmula para fazer sucesso na internet. Divirta-se.

O segundo é uma coluna do Contardo Calligaris na Folha. É um depoimento no melhor estilo da psicanálise: como já disse J.-D. Nasio, "para apreender as causas secretas que movem o outro, é preciso, primeiro e acima de tudo, descobrir essas causas em si mesmo". O título: Somos os maiores inimigos da nossa possibilidade de pensar (o texto foi compartilhada pelo André Vallias no... Facebook).

Este trecho resume bem a preocupação do colunista:
De um lado, o leitor do "feed" não se informa para saber o que aconteceu e decidir o que pensar, ele se informa para fazer grupo, para fazer parte de um consenso. Do outro, o comentarista escreve sobretudo para ser integrado nesses consensos e para se tornar seu porta-voz.

O resultado é uma escrita extrema, em que os escritores competem por leitores tanto mais polarizados que eles conseguiram excluir de seu "jornal" as notícias e as ideias com as quais eles poderiam não concordar: leitores à procura de quem pensa como eles.
Finalmente, há este ensaio muito didático do João Carlos Magalhães no jornal Nexo: Democracia e Internet: precisamos falar sobre algoritmos. É um dos melhores artigos que já li sobre o assunto.

Para o autor, as redes sociais têm sido úteis na mobilização política de minorias e da oposição, mas seus algoritmos inteligentes, criados para tornar a publicidade mais personalizada e relevante, podem no final das contas estar empobrecendo a nossa cultura, comprometendo a privacidade, a diversidade, a igualdade e a liberdade de expressão.

Apesar de todos esses perigos, noto que a própria rede que nos aprisiona em bolhas sociais e ideológicas, nos oferece saídas também, as quais, aliás, são de uma potência inédita. Você percebe? Agora estamos a um clique da tribo mais estranha que podemos conhecer na vida.

Qualquer internauta pode se presentear com uma experiência antropológica dessas. Basta abandonar por algum tempo o ambiente aconchegante e alienador da sua panelinha para ter um encontro com aquele outro modo de vida tão diferente que, por contraste, fará você ver que aquilo que você chama de realidade é somente mais um dos muitos mundos possiveis.

Leia também: A arte de viver em rede

24.9.16

O que faz de um publicitário um publicitário


Héber Sales

A nossa profissão está atualmente mais para matemática do que para ciências humanas. É uma síndrome que está devastando o marketing e ameaça a publicidade também. Aliás, vocês conhecem a diferença entre um profissional de marketing e um publicitário, não é?

Um profissional de marketing é o sujeito racional o suficiente para saber que um psicopata jamais vai ser tão querido quanto um mocinho. Um publicitário é como um bom roteirista: é criativo o suficiente para imaginar a história de um serial killer psicopata encantador, com quem quase todo mundo vai se identificar (Dexter).

A miséria da maioria das faculdades de publicidade hoje em dia é ensinar marketing e negócios demais, e arte, criação e criatividade de menos. O que é preciso aprender de uma vez por todas? Que a linguagem não foi feita para revelar a verdade - e eu duvido que revele -, mas para realizar o impossível.

Fazendo arte, jogando bola


O excesso de raciocínio analítico e linear começa pelo modo como alguns (cada vez menos, sejamos justos) ainda vêem o trabalho das agências de publicidade .

Uma agência não é uma indústria ou repartição. Uma agência é uma bola rolando, uma bola chamada criação. Cada setor da agência é um dos gomos da bola (mas todos os gomos são a mesma bola, a bola da criação; todos são criativos). Imaginem.



Os gomos rolam juntos desde o começo da jogada até o fundo do gol. Uma hora, um gomo está por cima, empurrando os outros adiante; outra hora, ele está por baixo, sendo empurrado (mas logo ele pode voltar a ficar por cima e empurrar os demais novamente).

Quando o gomo do atendimento começa a rolar, os outros gomos já estão rolando também, ou seja, a bola da criação já começou a girar: as perguntas na reunião do briefing são perguntas criativas, que dão abertura a ideias fora da caixa (talvez por isso muitas agências hoje em dia levem toda a equipe para a reunião de briefing com o cliente). Idem para as perguntas que o planner faz em suas pesquisas com consumidores, análises de mercado, etc.

Quando o gomo da mídia ou da produção está por cima, impulsionando os outros, ele faz os gomos do atendimento, do planejamento e da criação rolarem outra vez e tomarem, eventualmente, uma nova direção: eles conhecem possibilidades de meios, formatos e execução que os demais gomos (ainda) desconhecem, possibilidades que abrem janelas para outras visões estratégicas e criativas.

Por isso é bom que os gomos corram todos juntos. Uma agência ou qualquer outra empresa que trabalha com criatividade não pode ser organizada como uma linha de montagem fordista. Não vai funcionar, a mágica não vai acontecer.

O que fazer se te colocarem numa linha de montagem dessas? Abra a roda e faça todo mundo começar a conversar o tempo todo. É a melhor maneira de evitar que lá pelo meio do trabalho, quando a coisa já estiver quase na produção, você descubra que precisa fazer um bocado de retrabalho se quiser colocar na rua a campanha arrebatadora pela qual o coração de todo publicitário bate mais forte (e o coração do seu cliente também).

9.9.16

Ativismo social é tendência

Três mega eventos, a mesma tendência: ativismo social marca o ano de 2016 na arte, na moda e na arquitetura.

A 32a. Bienal São Paulo de Arte, cujo tema é Incerteza Viva, seleciona obras que tratam das grandes questões do nosso tempo, tais como aquecimento global, perda da diversidade biológica e cultural, instabilidade econômica e política, injustiça no acesso aos recursos naturais, xenofobia e migração global, entre outras. Arte existencialista e de protesto, com forte carga política.

O primeiro dia da Semana de Moda de NY foi de militância. Feminismo e migração foram destaque nos desfiles do coletivo FTL Moda e de Johny Dar.

Na arquitetura, a Bienal de Veneza reúne trabalhados que contribuem para o bem comum e a melhoria de vida das pessoas. O Brasil participa com 15 projetos.

7.9.16

Arte, cultura e publicidade

Regra e exceção na sociedade contemporânea



"Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção" - Jean-Luc Godard. 

"Propaganda não é arte, é artesanato" - Washington Olivetto.



Héber Sales

De agora em diante, vou tratar aqui de um assunto um pouco diferente. Neste blog, já discuti sobre essa relação confusa entre arte e publicidade. Também desenvolvi uma abordagem de branding que aproxima a publicidade do ativismo cultural, o tal branding hipercultural. Agora, porém, quero trazer a arte para o centro do debate.

Cultura 


Como esclarece Geertz (1978), cultura não é exatamente regra como queria Godard, mas "tendência dominante", e raramente os grupos sociais e os indivíduos aderem de todo aos seus princípios e padrões.

Observe-se, por exemplo, o atual debate em torno da classificação de gêneros, no qual vários segmentos da sociedade propõem uma revisão da tradicional categoria feminino vs. masculino com acréscimos e até subtrações, como é o caso da moda sem gênero tão em voga entre as grandes grifes.

A dificuldade em se conseguir uma submissão unânime aos termos de uma cultura acontece porque nenhum sistema cultural, qualquer que seja ele, consegue dar conta de toda a complexidade com que lida o ser humano. Grupos e indivíduos sentem que seus padrões são, em várias circunstâncias, insuficientes para descrever, organizar e explicar a sua realidade, seja ela interna ou externa ao sujeito.

Arte


A arte, se não toda, pelo menos um certo tipo de arte (a arte moderna e contemporânea ocidental, agora globalizada), é uma denúncia dessa condição de indigência cultural: ela pode ser vista como uma crítica à cultura em favor da liberdade criativa do sujeito e, como tal, ela pode, entre outras alternativas, reembaralhar e reconstruir os valores e categorias de uma sociedade para sugerir modos de vida mais significativos, ou, de modo radicalmente cético, transcender a nossa mania de tudo classificar e rotular (discuto outros conceitos de arte neste artigo sobre publicidade e arte).

Essa parece ter sido a opção de Michel Duchamp, por exemplo, com sua arte carregada de ironia, e de muitos dos seus discípulos também, entre eles John Cage (GOMPERTZ, 2013). A transcendência proposta pela arte duchampiana visaria a realização do sujeito por meio de uma maior liberdade de pensamento e de imaginação, contra a qual estaria, até certo ponto, a cultura e até a própria arte institucionalizada dos museus, universidades e galerias.

Subjetividade e cultura


Esse conflito é um tema freudiano por excelência, o qual discuto no ensaio o mal-estar da cultura e o consolo da arte. É também um dos principais eixos do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker (2007), que trata, entre outros assuntos, de como os indivíduos podem se relacionar com a cultura em busca de um maior senso de realização.

Entre as estratégias discutidas por Becker, encontra-se justamente a atitude artística de crítica e reconstrução radical da cultura. No extremo oposto, ele coloca o sujeito exemplarmente reprimido, que neutraliza o conflito entre cultura e subjetividade por meio da negação de suas particularidades e desejos. A possibilidade de transcendência por meio da arte não é abordada por Becker, que só considera a transcendência relacionada à experiência do sagrado.

Arte e transcendência


Há, no entanto, uma dimensão sagrada na arte duchampiana, que é justamente aquela que a liga à filosofia e à prática zen-budista (TOMKINS, 2004). Essa possibilidade não é discutida por Ernest Becker. É umas das possibilidades que se pretende debater nestes ensaios a fim de montar um quadro teórico que aprofunde e amplie o entendimento sobre as relações entre arte, subjetividade e cultura.

Arte como sistema cultural


Como um contraponto à noção de arte como crítica à cultura, é preciso considerar pontos de vista como o de Clifford Geertz (1997), que vê a arte como um sistema cultural também e, assim sendo, um elemento interno ao fenômeno da cultura. A propósito, até mesmo a subjetividade pode ser vista como sendo culturalmente constituída (escrevi à respeito disso neste ensaio sobre Bakhtin, autor que apresenta de forma bastante original um dos melhores e mais bem acabados argumentos sobre o assunto).

Outras importantes referências nesta pesquisa são: a visão da arte como contracultura e a noção de que, em nossa sociedade, a contracultura é valorizada e funcional, isto é, tem um papel socialmente construído e sancionado (TIBO, 2006). A arte reafirma-se então como crítica à cultura.

Arte e publicidade


Uma vez estabelecido esse quadro teórico, ele poderá ser usado aqui para tratar de uma questão mais específica: as relações entre arte e publicidade.

Se, por um lado, como explica Carrascoza (2006 e 2014), a publicidade se apropria de estratégias discursivas e recursos criativos da arte, por outro, ela pode ser vista como mera estetização de valores já sancionados por uma determinada sociedade ou grupo social (VOLLI, 2003).

Esta atitude culturalmente passiva e subserviente da publicidade não é entretanto uma unanimidade no meio profissional e corporativo. Há muitos que, como Toscani (1996), propõem que a publicidade tenha um papel transformador da realidade social e cultural em que vivemos, promovendo uma maior realização dos consumidores enquanto sujeitos.

Em que medida discursos como esse aproximariam a publicidade da arte enquanto crítica à cultura? Quais implicações tal prática teria na vida social das marcas?

Essas são as questões que estou abordando em meu projeto para o doutorado. Compartilharei aqui ao longo dos próximos meses alguns textos sobre o assunto. Quem quiser trocar ideias sobre essa pesquisa pode entrar em contato comigo pelo e-mail hebersales@gmail.com

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Leia também: Publicidade é arte? Regra e exceção no trabalho criativo

Referências


BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CARRASCOZA, João Anzanello. A evolução do texto publicitário. São Paulo: Futura, 2006.

________________________. Estratégias criativas da publicidade: consumo e narrativa publicitária. São Paulo: Estação das Letras, 2014.

GEERTZ, Clifford. A transição para a humanidade. TAX, Sol (org.), 1966.

______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

______________. A arte como um sistema cultural. In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de arte moderna. Do impressionismo até hoje. Jorge Zahar Editor Ltda, 2013.

TIBO, Rafael Carneiro. Borboletas tatuadas: contracultura e arte contra a cultura. Anais do I Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais: nossa história com todas as letras. Mariana: UFOP, p. 1-9, 2006.

TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2004.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Ediouro Publicações, 1996.

VOLLI, Ugo. Semiótica da Publicidade. Lisboa: Edições 70, 2003.

18.3.16

O fim da era dos apps

O garimpo da Galera Unplanned no SXSW rendeu. A Camila Gadelha trouxe o melhor insight na minha opinião, uma tendência que pode mudar bastante a forma como interagimos com nossos gadgets e com os serviços e conteúdos disponíveis na internet. Confiram.

"We think the age of apps is coming to an end", quote do Anthony Green, Emerging Partnership Lead do KiK. Ele acredita que o futuro dos ecossistemas mobiles vai ser 100% conversacional. A corrida agora é pra criar bots focados em comunicação instantânea e altamente personalizada.  
· Varejo de Bate-Papo ou "Conversational Commerce" é uma realidade, não uma tendência. Quem desenvolve as coisas já tá fazendo isso acontecer mesmo e é maravilhoso. Pedir Uber pelo FB Messeger, conversar com o BOT da Sobrenatural, pedir pizza pelo KiK sem precisar falar com um humano mas conseguindo descrever todas as alterações na massa e no molho que você quiser é brilhante.  
· Todo esse movimento só é capaz de acontecer porque finalmente a gente chegou em um momento de semi-maturação de inteligência artificial pra relacionamento humano. Joguinhos como o MathCraft da Cycorp e o Life is Strange são um exemplo bem claro disso, ao mesmo tempo, linguagens intuitivas de programação como o Stephen Wolfram desenvolve e o Slack começa a usar no dia-a-dia mostram que as pessoas vão aprender lógica de programação quer elas queiram, quer não.  
· Aliás,vale conhecer a Cycorp, empresa aqui de Austin, TX que há 30 anos estuda e desenvolve aplicações usando inteligência artificial. · É só nesse momento que produtos / robôs como o Echo da Amazon conseguem de fato ganhar mercado. Porque não são mais tranqueiras que nem as primeiras telinhas touch-screen. São produtos funcionais que começam a aprender de verdade e ir além do "Siri, faz um beat-box por favor!"  
· Tudo isso começa a forçar várias empresas a reavaliarem suas estruturas internas. Como você vai ser um cartão de crédito ou um jornal sem uma equipe sinistra de analytics ou de desenvolvimento capaz de construir e alimentar um bot próprio? O Washington Post é um exemplo muito massa disso. Ao invés de ficar assistindo o mundo acontecer eles desenvolveram toda uma inteligência (e produtos) proprietários de analytics preditivos e agora além de usar tudo isso pra construir conteúdo mais relevante, também vendem pra quem tiver o dinheiro.