30.5.09

Um (pre)texto para a imaginação

Marketing e poesia, muitos estranham a mistura. Afinal, o executivo costuma ser caracterizado na nossa cultura por sua racionalidade instrumental. Frio, calculista, pragmático, materialista, o gestor seria o oposto do sensível, emotivo e espiritualizado poeta. Ora, esse senso comum carrega um grande engano.

Para começo de conversa, poesia não é emoção. Envolve emoção também, mas não apenas ela. E nem é a emoção seu principal elemento. A poesia é uma aventura lingüística que expande o pensamento.
"A razão só pode seguir os caminhos que imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.

Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos." (Richard Rorty).
Eu já discuti aqui no blog como a emoção pode ser um fenômeno bem menos subjetivo do que supomos. Não repetirei todos os argumentos agora. Lembro apenas que as nossas emoções só se tornam perceptíveis e significativas para nós graças à sua natureza cultural e simbólica. Isto quer dizer que elas são fortemente institucionalizadas, modeladas por valores e crenças coletivos.

Talvez por isso João Cabral de Melo Neto tenha dito que a poesia é como um pássaro obrigado a caminhar no chão por um quilômetro. Fiel à sua abordagem antilírica, o poeta pernambucano esclarecia com tal frase que a grande poesia é contra-intuitiva.

É preciso desconfiar das nossas "idéias inspiradas", pois, como bem alertou Antonio Cicero numa coluna na Folha de São Paulo, elas geralmente não passam de ecos e simples re-arranjos do que lemos e ouvimos por aí. Para escrever ou dizer algo realmente original e criativo, é preciso combater os ilusionismos da inspiração repentina e os automatismos da língua domesticada.

A poesia funciona assim. Ela extrai a porção fóssil da língua, chacoalha as nossas idéias acostumadas.

"As minhocas arejam a terra, o poeta areja a linguagem", já disse o poeta Manoel de Barros.

O professor e crítico João Adolfo Hansen expressou a proposta brilhantemente:
"[O papel da poesia é] produzir vazio, evidenciando a ficção que é o eu, impedindo que se delire com a linguagem das instituições, dando forma eficaz às maiores dores, fazendo a gente ficar espantado com a alternativa de outra vida".
Como a poesia é capaz de fazer isso? Por meio de boas metáforas (como fez o próprio João Cabral ao comparar a poesia a um pássaro por exemplo): a matéria-prima de um grande poema é a metáfora escrita de uma forma rara e sensível.

Manoel de Barros costuma dizer que em seus poemas a metáfora apaga a idéia, deixando os leitores livres para interpretar os seus versos como quiserem - é preciso muita imaginação para "compreender" a poesia dele, porque nela poucas palavras são usadas de acordo com dicionários. E é aí que a poesia deixa de ser apenas "uma ocasião para a beleza", como queria Jorge Luis Borges, e passa a servir também como um (pre)texto para a imaginação.

Por isso quando você, pessoa de negócios, precisar de um bom motivo empresarial para ler poesia sem vergonha, pode apelar: "leio poemas para desenvolver a minha criatividade e a minha capacidade de inovar blá, blá, blá" - no fundo, porém, nós sabemos que o seu objetivo é bem mais nobre: você lê poesia para se tornar plenamente humano.

Para ir além:

Conhecimento poético
Entrevista com Antonio Cicero